16 de jan. de 2010

BARDO THÖDOL _ O LIVRO TIBETANO DOS MORTOS_


Presumimos que os mortos sabem que não mais estão vivendo neste plano. O Budismo Mahaiânico ilustra que isso não é necessariamente verdade. Para que seu renascimento possa ser mais vantajoso, o defunto deve ser capaz de ouvir as palavras de seu instrutor – a voz do Mestre Interior.
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O adepto do misticismo oriental põe grande ênfase na arte de morrer, porque para ele a morte não é o término da vida, mas um momento de pausa em que ele percebe uma clara noção de sua existência futura. Para tal personalidade, a morte não é o lado oposto da vida, mas simplesmente uma experiência em sua viagem na estrada maior da existência.

O Bardo Thödol, conhecido como “O Livro Tibetano dos Mortos”, procura instruir a personalidade desencarnada na direção da dinâmica energia de vida, por ele vivenciada como fluindo por três etapas reconhecíveis, que cobre o período intermediário de quarenta e nove dias entre a morte física e o renascimento físico. A primeira etapa, de clara luz primordial, descreve acontecimentos psíquicos do momento da morte, e provoca a suprema intuição, a iluminação, e a maior possibilidade de conseguir libertação do eterno círculo de nascimento e morte. Essa etapa é chamada de ‘chikhai Bardo’. A segunda etapa consiste em aparições tranqüilas ou iradas, que constituem uma ‘ilusão cármica’ ou um estado onírico que advém imediatamente após a morte. Essa etapa é chamada de ‘chõnyd Bardo’. A terceira é uma etapa de intensa realidade ou discernimento, relacionada com o despertar do instinto de nascimento e o início de outros eventos pré-natais. É chamada de ‘Sidpa Bardo’.

O Bardo Thödol ensina que devemos aceitar com imparcialidade o mundo como ele realmente é, e não como o percebemos ou segundo a ele reagimos. Isso indica que devemos ter a coragem de não nos perdermos nas formas-pensamento, que são produtos de nossa própria mente. Na filosofia oriental, essas formas-pensamento, transitórias e discriminativas, são chamadas de ‘maya’.

Henrich Zimmer ilustra ‘maya’ quando afirma: “... A constante projeção e exteriorização de nossa própria ‘shakti’ [energia vital] é o nosso “pequeno universo”, nossa esfera restrita e ambiente imediato, tudo o que nos ‘diga respeito e nos afete’. Nós povoamos e colorimos a tela neutra e indiferente com as personagens e os dramas cinematográficos do sonho íntimo de nossa alma, e tornamo-nos cativos de seus eventos, deleites e calamidades dramáticas...”

Entretanto, para não sermos presas de nossa própria energia de ‘maya’ e do ‘filme que ela incessantemente produz’, precisamos ser o senhor e o mestre de ‘maya’. As instruções do Bardo Thödol visam a nos ajudar nesse nobre objetivo, livro esse conhecido como o “Livro Tibetano dos Mortos”, porque sua finalidade é análoga à do conhecido como “Livro Egípcio dos Mortos”. Porque sua finalidade é análoga à do conhecido como “Livro Egípcio dos Mortos.” Este último não é propriamente um livro, mas uma série de papiros e pergaminhos escritos durante séculos, constituindo um compêndio de liturgias funerais, ritos mágicos, preces e cerimônias que preparam a pessoa para a morte. O “Livro dos Mortos” contém um prospecto do que se pode esperar imediatamente após a transição desta vida.

O Bardo Thödol consiste em obras “tântricas”. Tantra, em sânscrito, significa discurso ou tratado. Os tantras geralmente possuem natureza religiosa e pertencem a uma escola de Ioga chamada “Yoga-carya Mahayana.” Existem dois grupos principais de tantras, um hindu e o outro budista. O hindu geralmente é em forma de diálogo entre deus e Shiva, o Guru Divino, e sua Shakti, Pârvati. Juntos representam o aparecimento dual da energia psíquica criativa. A filosofia do Mahayana, “O Grande Caminho”, teria surgido formalmente nos primeiros séculos da Era Cristã, e constitui a fonte principal do “Livro Tibetano dos Mortos.” A característica principal de ambas as classes de tantras é que elas geralmente se baseiam na filosofia iogue. A palavra ioga denota junção, união da parte ao todo, e a disciplina da própria mente por meio de concentração mental. “Se a mente for disciplinada, transformada, ampliada, aguçada, iluminada, sê-lo á também a energia vital do indivíduo.” [2]

Talvez uma das lições mais importantes decorrentes do Bardo Thödol seja a de aprendermos a canalizar adequadamente nossas energias criativas para que, uma vez unidas, possam se manifestar a nós como energia vital pura. Analogamente à Divina Sofia do Ocidente, essa energia vital é representada no Budismo Mahayna como a Deusa suprema, “Prajnä-Paramita, a transcendental sabedoria iluminadora que leva para além dos fenômenos terrenos, para a Outra Margem.”

Numa reflexão mais demorada percebemos certas correlações religiosas entre o Ocidente e o Oriente. Haverá também correlações científicas? Em estudo do Bardo Thödol e da Ioga e Doutrinas Secretas Tibetanas indica que existem catorze principais nadis, ou canais nervosos psíquicos, e centenas de milhares de canais nervosos do corpo humano.[3] Esses canais nervosos seriam as contra-partes psíquicas do sistema nervoso orgânico. Na Ioga, esses nervos são concebidos como os canais invisíveis “para o fluxo das energias psíquicas”. Na realidade, os agentes de condução do organismo são considerados os “ares vitais” [prana-vayu]. O Bardo Thödol e a Ioga Tibetana explicam que existe uma “grande via” chamada “Sushumana-nadi.” Essa “grande via”, conforme aprendemos, é o canal mediano que percorre o centro da coluna vertebral. Um canal direto [Pingala-nadi] e um canal esquerdo [Ida-Nadi] enroscam-se ao redor do canal central, para a direita e para a esquerda.[4].

Em tudo isso podemos perceber certo paralelismo surpreendente com o “Caduceu”, que no Ocidente identifica Hermes ou Mercúrio, um de cujos papéis é guiar o morto ao Outro Mundo. Como analogia, podemos imaginar o bastão central como o sistema nervoso central, e a bola alada como o cérebro. As duas serpentes entrelaçadas podem representar o sistema nervoso autônomo. A figura pode representar também a coluna vertebral, com suas colunas sensorial e motora ascendente e descendente e a coluna equilibradora correlata.

O Budismo Mahayana afirma que a energia vital [de que em última instância dependem todos os processos psicofísicos] é armazenada nos “chacras” ou centros psíquicos. Tais centros, análogos ao que chamaríamos de dínamos, estão localizados ao longo da “grande via” e estão interligados. Desses dínamos ou centros psíquicos, sete seriam de fundamental importância. O que é especialmente importante para nós é o primeiro “esteio-raiz”. Esse chacra está localizado no períneo, a região no centro da pélvis. Esse primeiro chacra seria a fonte secreta da energia vital, sendo regulado pela imagem simbólica da deusa KUNDALINI. Essa energia extraordinariamente poderosa pode ser muito destrutiva ou enlevante, e devemos despertá-la com muito equilíbrio de coração e propósito. A KUNDALINI é simbolizada pela serpente, porque seria “um extraordinário poder oculto que jaz volteado como uma serpente adormecida”. Na tradição alquímica ocidental, a serpente é representada como um dragão que guarda o valioso tesouro.

Após muitas vidas dedicadas à disciplina intelectual e ao refinamento emocional, o ‘chela ou estudante’ que é cuidadosamente guiado por seu guru pessoal ou Mestre Interior está pronto para pôr em atividade essa energia adormecida espiralada. O Bardo Thödol explica ainda que certos “mantras”, ou palavras secretas, quando encunciados, estabelecem vibrações que estimulam os ares vitais interiores, ou energias psíquicas, nos canais invisíveis. Entretanto, quando, através de ação correta ou “equilibrada”, a energia da Kundalini é liberada e desimpedida em sua ascensão a cada centro, desenrola-se como uma serpente, penetrando e estimulando todos os centros psíquicos com sabedoria, até que chegue finalmente ao principal centro do cérebro. Todo o corpo, físico e psíquico, é então revitalizado e harmonizado, resultando isso na grande iluminação do iogue.

Os ares ou as energias vitais servem como um “elo psicofísico”, por assim dizer, que une o aspecto individualizado da consciência ao aspecto cósmico ou universal da Consciência, o microcosmo com o macrocosmo, ou a parte com o todo.

Deixando de lado os termos sânscritos e o simbolismo oculto arcaico em prol da metafísica e do misticismo moderno, podemos compreender o que afirma o Bardo Thödol sobre a energia Kundalini. Em cada ser humano existe uma grande força de energia semi-adormecida. Existem canais vitais para a liberação e uso desse poder, associados aos sistemas nervosos central e autônomo e aos centros psíquicos. A certo grau, parte dessa energia está sendo constantemente gerada, dirigindo as atividades do chamado “eu psíquico”. Não obstante, pelo uso criterioso do som, esse grande reservatório de poder psíquicos pode ser estimulado a liberar maior quantidade de energia para os vários canais e para o cérebro, o que resulta numa imaginação criativa e numa vida virtuosa e nobre. Quando isso é feito gradativa e adequadamente, os centros psíquicos e físicos são inter-relacionados de modo tão harmonioso, que o homem vivencia o eu superior e a Consciência Cósmica como uma experiência benéfica e gloriosa. É então capaz de “perceber interiormente” os fatores que trazem iluminação e inspiração a uma existência terrena de serviço à humanidade.

O processo ordenado que leva ao despertar harmonioso dessa força semi-adormecida em nosso interior sempre será uma odisséia interior, a despeito de seguir-se alguma forma moderna de misticismo oriental ou ocidental. O método oriental, de introspecção, é igual ao processo alquímico ocidental que ocorre dentro do indivíduo. Por meio desse processo de espiral, gradualmente nos familiarizamos com os três planos de experiência “intermediária” ou “bárdica”, as chamadas lições cármicas, os muitos testes, tribulações e eventuais vitórias peculiares a cada etapa de nossa existência fenomênica, advindos por muitos nascimentos, mortes e renascimentos.

O bardo Thödol nos afirma que, se aprendermos a reconhecer e dominar nossas formas-pensamento, manifestem-se elas como sonhos ou como fenômenos exteriores, obteremos, dentro de uma flor de lótus[ou rosa], milagrosamente, um recurso transcendental de puro nascimento, na presença de ”Maitreya”[5] [ou a Segunda Manifestação do Cristo]. O Budismo Mahayana considera Maitreya o próximo grande instrutor do mundo. Por enquanto ele espera, como Rei dos Céus Tushita, ou o “Feliz Reino Ocidental”, [o Paraíso da Trindade Sagrada], onde habitam as entidades especiais, que aguardam a última encarnação antes de se tornarem budas.

O Conceito ocidental de Feliz Reino Ocidental pode ser considerado como a “centelha sagrada”, a centelha do ser por meio da qual podemos obter o renascimento divino e consecução de pura Realidade Objetiva do Cósmico: ”fundir a gota de orvalho da mente individualizada no Oceano Brilhante da Mente Única.”[7]. Auxiliar a conseguirmos esse estado nobre e iluminador é o objetivo de todas as autênticas escolas de mistérios orientais e ocidentais. [Texto de Burnam Schaa]
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Notas:
[1]_Zimmer, Heinrich, Indian Myths & Symbols In Indian Art & Civilizatio, Princeton, NJ, Princeton University Press/Bollingen Seres, 1946;
[2]_Evans-Wentz, W.Y. Tibetan Yoga and Secret Doctrines, London, Oxford University Press, 1960;
[3]_Evans-Wentz, W.Y. The Tibetan Bok of the Dead, London, Oxfor University Press, 1906;
[4]_Evans-Wentz, W.Y. Tibetan Yoga and Secret Doctrines;
[5]_ibid.
[6]_ibid.
[7]_ibid.