30 de abr. de 2011

Schopenhauer_O Mundo Como Idéia

O que impressiona o leitor logo no começo do Mundo como Vontade e Idéia é o estilo. Nada do malabarismo chinês, da terminologia kantiana, nem da ofuscação hegeliana, nem da geometria spinozista; tudo é claridade e ordem; e tudo admiravelmente centrado na direção do conceito do mundo como vontade, e por isso luta, e por isso miséria. Que brutal honestidade, que vigor refrescante, que leal retidão! Onde seus predecessores eram abstratos até a invisibilidade, com teorias que rasgavam poucas janelas para a visão do mundo real, Schopenhauer, como bom filho de um homem de negócios, é todo fatos concretos, exemplos,aplicações e, ainda, humor [*Exemplo do seu humor: “O ator Unzelman – celebre pelo habito de enxetar papeis – foi proibido de improvisar, num dos teatros de Berlim. Logo depois teve de aparecer em cena montado a cavalo”. Ao entrar a alimaria conduziu-se sem nenhum respeito para com a assistencia. “A platéia começou a rir-se e Unzelman severamente admoestou o cavalo: “Não sabe então que “é proibido improvisar?” – Vopl. II, pág.273]. Depois do império de Kant, humor em filosofia formava uma espantosa inovação.

  • Tempo nenhum pode ser mais desfavorável a filosofia do que este em que ela é vergonhosamente posta a serviço de objetivos políticos ou transformada em meio de vida...O oposto da máxima ‘primo vivere, deinde philosophare’ [primeiro viver, depois filosofar]. Esses senhores querem viver e vivem da filosofia. Eles, as mulheres e os filhos. A regra ‘Eu canto a musica daquele de cujo pão eu vivo’, sempre foi pratica; ganhar dinheiro com a filosofia era pelos antigos, um habito dos sofistas... nada se obtêm como o ouro que não seja medíocre...É impossível que uma era que durante vinte anos aplaudiu Hegel – um Caliban Intelectual -  como o maior de todos os filósofos ... possa fazer alguém que a isso assistiu desejar sua aprovação. A verdade será sempre ‘paucorum hominem’ [de poucos], e por isso tem de, calma e modestamente, esperar pelos poucos que, discordantes da regra, saibam apreciá-la...A vida é breve, mas a verdade, longa; falemos a verdade.

Estas ultimas palavras são nobres, mas nelas há qualquer coisa de uvas verdes, porque nenhum homem ansiou tanto pó aplausos como Schopenhauer. Seria ainda mais nobre se nada dissesse de Hegel: de vivis nihil nisi bonum – dos vivos só falemos bem. E enquanto modestamente esperava reconhecimento, declarava “nada vejo em matéria filosofica feito entre mim e Kant”. “Sustento a ideia de que o mundo é vontade como a mais longamente procurada pela filosofia e cuja descoberta era tida pelos familiares com a historia como tão impossível quanto a da pedra filosofal” [*Vol.I, pág.VII]. “Pretendo ressaltar apenas um pensamento. Entretanto, apesar de todos os meus esforços para expressá-lo tenho de empregar este livro inteiro. Lede-o duas vezes e da primeira com grande paciência”. Modéstia! “Que é a modéstia senão a humildade de hipócrita, por meio da qual, num mundo tumefacto de inveja, alguém pede perdão dos seus méritos aos que o não possuem nenhum?” Não há duvida que quando a modéstia foi transformada em virtude se tornou coisa muito vantajosa para os néscios, porque quem falar de si será tido como um deles. [*Ensaios, “Do Orgulho”].

Nenhuma humildade na primeira sentença do livro de Schopenhauer. “O mundo”, começa ele, “é minha idéia”. Quando Fichte enunciou proposição similar os próprios alemães, refartos de metafísica, indagaram: “E que diz disto sua mulher?” Mas Schopenhauer não tinha mulher. Sua intenção era sem duvida muito simples: desejava, já de partida, aceitar a posição kantiana, de que o mundo externo só nos é conhecido através de nossas sensações e idéias. Em seguida vem uma exposição bastante clara e convincente do idealismo, mas que constitui a parte menos original da obra e que ganharia em vir no fim em vez de no começo. O mundo gastou o espaço de uma geração para conhecer Schopenhauer por ter ele posto o pior na frente, ocultado seu próprio pensamento atrás de uma barreira de duzentas paginas de idealismo de segunda mão.

A parte mais vital da primeira seção é um ataque ao materialismo. Como podemos explicar o espírito como matéria, se conhecemos a matéria unicamente por meio do espírito?

  • Se seguíssemos o materialismo com a idéia clara, ao chegarmos as suas cumeadas havíamos de ser assaltados pelo acesso de riso sem fim dos deuses olímpicos. Como que despertando de um sonho, veríamos claro que o resultado final – conhecimento – por ele tão laboriosamente alcançado, estava pressuposto como condição indispensável do ponto de partida. Simples matéria; e quando imaginamos que pensamos matéria, na realidade pensamos unicamente a coisa que percebe a matéria -  os olhos que a vêem, a mão que a sente,a compreensão que a conhece. Desse modo a tremenda petição de principio revela-se inesperadamente; porque o ultimo elo mostra ser o primeiro – a cadeia é um circulo; e o materialista lembra o barão de Münchhausen, que ao nadar a cavalo suspendia a montada no ar, pelo rabo...o cru materialismo que ainda hoje, em pleno século dezenove, é servido como se fosse original...nega estupidamente a força vital e procura deduzir os fenômenos da vida das forças físicas e químicas; e estas, dos efeitos mecânicos da matéria. Mas eu nunca poderei admitir que ainda a mais simples combinação química possa ter uma explicação mecânica; muito menos as propriedades da luz, do calor da eletricidade; Isto sempre requererá uma explicação dinâmica.

Não: é impossível solver o enigma metafísico, descobrir a secreta essência da realidade examinando primeiro a matéria e examinando depois o pensamento; temos que começar com o que conhecemos direta e intimamente – nós mesmos. “Não podemos chegar a real natureza das coisas vindo por fora. Por mais que investiguemos nunca alcançaremos senão imagens e nomes. Somos como o homem que rodeia um castelo, inutilmente procurando a entrada e a espaço fazendo desenhos da frontaria”. Entremos no castelo. Se pudermos apreender a natureza ultima de nosso próprio espírito, talvez então possamos conseguir a chave do mundo externo.   

Schopenhauer_O Homem

Schopenhauer nasceu em Dantzig a 22 de fevereiro de 1788. Seu pai fora um negociante feliz, de temperamento fogoso, independente e amigo da liberdade. Mudara-se de Dantzig para Hamburgo quando Artur tinha apenas cinco anos, porque Dantzig havia perdido a sua liberdade com a anexação a Polônia. O menino cresceu, pois, num ambiente de negócios e finanças; e embora abandonasse muito cedo a carreira mercantil para a qual seu pai o impelia, esse ambiente deixou-lhe marcas – rudeza de maneiras, espírito realístico, conhecimento dos homens e do mundo; fê-lo o antípoda do filosofo sedentário e acadêmico, que ele tanto detestava.  Seu pai finou-se, aparentemente por suas próprias mãos, em 1805. Sua avó paterna havia morrido louca.

“O caráter ou vontade”, diz Schopenhauer, “herda-se do pai; o intelecto, da mãe” [*O Mundo como Vontade e como Idéia, 1883, III, 300]. Sua mãe tinha intelecto -  tornara-se uma das mais populares romancistas do tempo – mas tinha também caráter e temperamento genioso. Fora infeliz com o marido prosaico; e quando enviuvou-se deu-se ao amor livre, mudando-se para Weimar como ponto mais propicio para a vida que desejara. Artur reagiu contra isso como Hamlet contra o novo casamento de sua mãe rainha; e as brigas resultantes puseram-no na senda daquelas meias verdades sobre as mulheres com que polvilhou sua filosofia. Na correspondência entre ambos transparece o desacordo. “A senhora é insuportável e cansativa; todas as suas boas qualidades são estragadas pelo orgulho e tornam-se inúteis para o mundo unicamente porque a senhora não pode coibir-se de atormentar toda gente” [*Wallace: Life of Schopenhauer]. Em conseqüência, separaram-se; Artur só aparecia a visitá-la a espaços e conservava-se na mesma posição dos outros visitantes; tratavam-se então polidamente, como estranhos, em vez de se engalfinharem como parentes. Goethe, que apreciava Mme. Schopenhauer por permitir-lhe que fosse lá com sua Cristina, estragou ainda mais a situação prevendo que o filho viria a ser um homem celebre; a mão não podia conceber dois gênios na família. Finalmente, numa disputa mais grave, a mãe expulsou de casa o filho e rival – e Artur ironizou dizendo que só através dele seria ela conhecida da posteridade. Logo depois Schopenhauer deixou Weimar; e conquanto sua mãe ainda vivesse mais vinte e quatro anos, nunca mais a viu. Byron, também menino em 1788, parece ter tido um drama de família similar. Estavam os dois homens, levados pelas circunstancias, condenados ao pessimismo; homem que não conheceu o amor de mãe – e, pior, que lhe conheceu o ódio – não tem motivos para ver com boa cara o mundo.

Entrementes, Schopenhauer passou pelo ginásio e pela universidade, e aprendeu mais do que estava no programa. Teve seus atritos com o amor e o mundo, ficando com o caráter e a filosofia afetados [*Wallace].Tornou-se sombrio, cínico, suspeitoso; também obesedado de terrores e manias; guardava seus cachimbos a chave e jamais confiava o pescoço a navalha de um barbeiro; dormia com duas pistolas carregadas no criado-mudo – talvez para maior comodidade dos assaltantes. Não podia ouvir barulho. “Há muito tenho a opinião”, escreveu, “de que a soma do barulho que uma pessoa pode suportar está na proporção inversa de sua capacidade mental, e pode ser considerada como uma boa medida desta...Barulho é tortura para os homens de pensamento...A super-abundante forma de vitalidade que se compraz em bater, martelar, derrubar coisas, sempre foi um tormento para mim” [*O Mundo como Vontade e como Idéia].E tinha um senso quase paranóico da sua grandeza não reconhecida; não lhe tendo sobrevindo imediatamente sucesso e fama, introverteu-se e roeu a própria alma.

Schopenhauer não teve mãe, nem mulher, nem filhos, nem família, nem pátria. “Foi absolutamente só, sem nem sequer um simples amigo; e entre um e nenhum estende-se o infinito” [*Nietzsche: Schopenhauer como educador]. 

Ainda mais que Goethe, era imune as febres nacionalistas da época. Em 1813, porém, de tal modo se deixou contagiar do entusiasmo de Fichte pela guerra contra Napoleão que pensou em alistar-se e chegou a adquirir armas. A prudência, entretanto, fê-lo recuar e argumentar que “Napoleão, afinal de contas, não fazia mais que dar ilimitada expansão a sede de mais vida que todos os fracos sentem, mas são obrigados a esconder” [*Wallace:”Schopenhauer”, Enciclopédia Britânica].Em vez de ir para a guerra, foi para o campo escrever uma tese de filosofia.

Depois dessa dissertação Sobre a Raiz Quadrada da Razão Suficiente [1813] [*Schopenhauer insiste, com pouca razão e muito ‘comercialmente’, que esta obra deve ser lida antes do Mundo como Vontade. O leitor deve ficar sabendo que o ‘principio da razão suficiente’ é a ‘lei de causa e efeito’ em quatro formas: - 1) Lógica como a determinação de conclusão pelas premissas; 2) Física, como determinação do efeito por causa; 3) Matemática, como a determinação da estrutura pelas leis da matemática e da mecânica; e 4) Moral, como a determinação da conduta pelo caráter], Schopenhauer dedicou todo o seu tempo a obra que ia imortalizá-lo – O Mundo como Vontade e Idéia. Mandou o manuscrito ao editor magna cum laude; aqui, disse ele, não há picadinho de velhas idéias, mas uma estrutura de pensamento original e da alta coerência, “claramente inteligível, vigorosa e não sem beleza”; um livro “que daqui por diante será a fonte de centenares de outros”. Tudo excessivamente egoístico, mas absolutamente verdadeiro. Muitos anos depois estava Schopenhauer tão seguro de ter resolvido os principais problemas da filosofia que pensou em mandar fazer um anel de sinete com a Esfinge a precipitar-se no abismo, como a Esfinge prometera fazer se seus enigmas fossem decifrados.

Apesar disso a obra não atraiu nenhuma atenção; o mundo estava muito pobre e exausto para interessar-se por estudos sobre sua pobreza e exaustão. Dezesseis anos depois de publicada Schopenhauer veio a saber que a maior parte da tiragem tinha sido vendida a peso. No ensaio sobre a Fama, na Sabedoria da Vida, cita ele, numa evidente alusão a sua obra prima, duas notas de Lichtenberger: “Trabalhos como este são como o espolho: se um asno nele se espia, não pode esperar ver um anjo”; e “quando uma cabeça e um livro se chocam e o som é de oco, será acaso o som do livro?” – Schopenhauer prossegue no tom da vaidade ofendida: “Mais um homem pertence a posteridade – ou por outras palavras, a humanidade em geral – mais se torna estranho a seus contemporâneos; porque como a obra não foi feita para eles e sim para o mundo largo, não há nela a cor local das coisas passageiras”. E torna-se eloqüente como a raposa da fabula: “Poderia um musico lisonjear-se com os rumorosos aplausos de uma audiência que ele soubesse quase surda, e na qual, para esconder o defeito, duas ou três pessoas aplaudissem? E que diria ele se descobrisse que essas duas ou três pessoas já varias vezes se tinham alugado para romper em aplausos aos mais pobres executantes? Nalguns homens o egotismo serve de compensação para a ausência de fama; em outros o egotismo coopera para a fama.

De tal modo se pos Schopenhauer neste livro que suas obras posteriores não passam de comentários a respeito; tornou-se o talmudista de seu próprio Torah, o exegeta de sua própria jeremiada. Em 1836 publicou um ensaio, A Vontade na Natureza, incorporado de certo modo a edição do Mundo como Vontade e Idéia aparecida em 1844. Em 1851 publicou Os dois Problemas Básicos da Ética e em 1851, dois substanciosos volumes do Parerga et Paralipomenaliteralmente, sub-produtos, que foram traduzidos em inglês com o titulo de Ensaios. Por este livro, a mais legível das suas obras e repleto de sabedoria e agudeza, recebeu como remuneração total dez exemplares. É difícil o otimismo em tais circunstancias.

Uma só aventura perturbou a monotonia da sua estudiosa reclusão depois de deixar Weimar. Havia esperado a oportunidade para apresentar a sua filosofia numa das grandes universidades da Alemanha; essa oportunidade veio em 1822, quando foi convidado por Berlim para privat-docent. Schopenhauer deliberadamente escolheu para suas lições as mesmas horas em que o todo poderoso Hegel prelecionava, esperando que os estudantes os pudessem comparar com os olhos da posteridade. Os estudantes, porém, não estavam assim antecipados e Schopenhauer viu-se a lecionar a bancos vazios. Resignou e vingou-se com as amargas diatribes de Hegel que maculam as posteriores edições de sua obra prima. Em 1831 irrompeu em Berlim a epidemia do cólera; tanto Hegel como Schopenhauer fugiram; mas Hegel voltou muito cedo, apanhou a infecção e faleceu em poucos dias. Schopenhauer não se deteve de alcançar Frankfort, onde passou o resto de sua vida de setenta e dois anos.

Como bom pessimista, evitou o engodo dos otimistas – viver da pena. Havia herdado interesses na firma comercial de seu pai e com modéstia viveu das rendas. Soube empregar seus dinheiros com sabedoria rara em filósofos. Quando uma empresa da qual havia tomado ações faliu e outros credores propuseram-se a aceitar liquidação com 70%, Schopenhauer resistiu e obteve pagamento integral. Tinha o bastante para ocupar dois cômodos em uma casa de pensão, na qual viveu os últimos trinta anos de vida na só companhia de um cão. Chamava-se Atma [o termo braamane para a alma do mundo], mas na cidade diziam o “jovem Schopenhauer”. Suas refeições tomava-as habitualmente no Englischer Hof. Ao sentar-se a mesa punha diante de si uma moeda de ouro; ao levantar-se recolhia-a ao bolso. Um garçom animou-se a indagar daquilo, e a resposta do filosofo foi tratar-se da aposta que fazia consigo mesmo, de que os oficiais ingleses que freqüentavam o restaurante em tempo algum deixariam de conversar sobre cavalos, mulheres e cães -  e como nunca perdia, a moeda não ia jamais para a caixa dos pobres.

As universidades ignoravam-no, e aos seus livros, como para provar sua afirmação de que todos os avanços da filosofia se fazem fora dos muros acadêmicos. “Nada”, diz Nietzsche, “ofendeu tanto os sábios alemães como a atitude de Schopenhauer para com eles”; Mas Schopenhauer tinha aprendido a paciência e confiava que, embora tarde, haviam de lhe reconhecer o valor. E de fato assim foi. Homens da classe media – legista, médicos, negociantes – descobriram nele um filosofo que em vez de um pretensioso malabarismo com irrealidades metafísicas lhes dava uma concepção inteligível dos fenômenos da vida real. Desiludida dos ideais e esforços de 1848, a Europa voltou-se com aclamações para um filosofia que corporificava o desespero de 1815. O ataque da ciência contra a teologia, a denuncia socialista da guerra, a pressão biológica da luta pela vida foram os fatores que afinal ergueram Schopenhauer aos galarins da fama.

Não estava ele demasiado velho para gozar a popularidade; lia com avidez todos os artigos publicados sobre sua personalidade e pedia aos amigos que lhe enviassem, como porte a pagar, tudo quanto saísse a seu respeito. Em 1854, Wagner mandou-lhe um exemplar do Anel dos Nibelugen com uma palavra sobre o juízo do filosofo sobre a musica. Em vista dessas homenagens o grande pessimista se tornou nos últimos anos quase um otimista; tocava flauta com freqüência depois do jantar, e agradecia ao Tempo tê-lo varrido dos ardores da mocidade. Começou a vir gente de toda parte para vê-lo; e ao completar senta anos, em 1858, teve congratulações de todos os países do mundo.

Schopenhauer ia viver mais dois anos. A 21 de setembro de 1860 esteve a mesa para o breakfast, aparentemente bom de saúde. Uma hora depois a dona da casa o encontrou ainda a mesa - mas morto.          

29 de abr. de 2011

Schopenhauer_Sua Época

Por que motivo a primeira metade do século dezenove deu surto a uma série de poetas pessimistas – Byron da Inglaterra, Musser na França, Heine na Alemanha, Leopardi na Itália, Pushkin e Lermontof na Rússia; a um grupo de compositores – Schubert, Schummann, Chopin e ainda o Beethoven da ultima fase [um pessimista que procurava mostrar-se otimista];e, acima de tudo a um filosofo eminentemente pessimista – Artur Schopenhauer?  

A sua grande antologia do infortúnio, O Mundo como Vontade e Idéia, apareceu em 1818. A “Santa” Aliança ia no apogeu. Dera-se a batalha de Waterloo, a Revolução estava morta, o “Filho da Revolução” apodrecia num penedo longe nos mares. Parte da apoteose de Schopenhauer á Vontade era devida a sangrenta e magnífica aparição da Vontade feita homem que foi o pequeno corso; e parte do seu desespero vinha do patético afastamento da ilha de Santa Helena -  a Vontade finalmente derrotada e a negra Morte vencedora única de todas as guerras. Estavam restaurados os Bourbons, os barões feudais voltavam a reclamar suas terras e o pacifico idealismo de Alexandre da Rússia havia dado nascimento a uma liga para a supressão universal do progresso. A grande era fora-se. “Rendo graças a Deus, dizia Goethe, de um tal esgotamento do mundo não haver coincidido com a minha mocidade”.

A Europa inteira jazia prostrada. Milhões de homens fortes tinham perecido; milhões de acres de terras aráveis jaziam em abandono; por toda a parte do Continente a vida tinha de recomeçar do começo e penosamente restaurar as reservas de civilização e riquezas destruídas pela guerra. Na sua viagem através da França e da Austrália em 1804 Schopenhauer espantou-se com a desordem e imundície das cidades, com a desoladora pobreza dos homens do campo, com o desassossego e miséria das aldeias. A passagem dos exércitos napoleônicos e anti-napoleonicos deixaram cicatrizes profundas em todas as nações. Moscou reduzira-se a cinzas. Na Inglaterra, a orgulhosa vencedora da luta, os campônios estavam arruinados pela queda do preço do trigo, e os operários industriais sofriam todos os horrores do nascente e ainda incerto regime fabril. A desmoralização agravava o desemprego. “Ouvi meu pai dizer”, escreveu Carlyle, “que nos anos em que a aveia foi a dez chellins o ‘stone’[sete quilos]os trabalhadores retiravam-se separadamente para a beira de um riacho onde bebiam em vez de jantar, procurando assim esconder a miséria aos olhos uns dos outros” [*Froude, Life and Letters of Thomas Carlyle].

Sim, a Revolução estava morta e com a morte da Revolução a vida parecia ausente da alma da Europa. Aquele novo céu chamado Utopia, cujo clarão alumiara a queda dos deuses, apequenara-se num difuso porvir onde só os olhos muito jovens viam alguma luz; os velhos tinham seguido por muito tempo o clarão enganador e agora o consideravam uma ironia as esperanças do homem. Unicamente os moços podem viver no futuro – aos velhos só deleita o passado; mas todos os homens da época eram compelidos a viver no presente -  um presente que não passava de dolorosa ruinaria. Quantos milhares de heróis e crentes não lutaram na Revolução! Em todos os paises, quantos corações moços não se voltaram para a jovem republica e viveram da sua luz e da sua esperança – até o momento quem Beethoven rasgou a dedicatória da Sinfonia Heróica, feita ao homem que deixara de ser Filho da Revolução para tornar-se o Sogro da reação? E estava ali agora o fim de tudo – Waterloo, Santa Helena, Viena; e no trono da França prostrada um Bourbon que nada havia aprendido e que nada esquecera. Era aquele o fim da geração mais cheia de esperança e que mais se esforçara de quantas o mundo vira! Que comedia era aquela tragédia – para os que sorriam com os olhos ainda em lagrimas!

Nesses dias de desilusão e dor as classes pobres ainda tinham o consolo da esperança religiosa; mas larga parte das classes superiores havia perdido a fé e olhava para o mundo em ruínas sem nenhuma antevisão de outra vida em que os horrores desta se dissolvessem em beleza e justiça. E na verdade era difícil crer que o trágico planeta que os homens conheceram em 1818 fosse mantido pela mão de um Deus inteligente e bom. Mefistófeles vencera e todos os Faustos desesperavam. Voltaire semeara o torvelinho; Schopenhauer estava maduro para a colheita dos frutos.

Raramente o problema do mal apareceu tão vivido e insistente aos olhos da filosofia e da religião. Cada tumulo de soldado, de Boulogne a Moscou as Pirâmides, era uma interrogação muda as estrelas indiferentes. Por que, Senhor, e por quanto tempo? Seria aquela universal calamidade, a vingança de um Deus justo contra a Era da Razão e da falta de fé? Sugestão ao intelecto penitente para inclinar-se diante das antigas virtudes, fé, esperança e caridade? Assim pensou Schelegel, e assim pensaram Novalis, Chateubriand, Musset, Southey, Wordworth e Gogol; como filhos pródigos, todos se voltaram para a velha fé. Outros, porém, se mostraram mais duros; o caos da Europa refletia o caos do universo; não havia nenhuma ordem divina, nem esperança celestial; Deus, se Deus existira, era cego, e o Mal espalhava-se sobre toda a face da terra. Foram vozes deste grito, Byron, Heine, Lermontof, Leopardi – e o nosso Schopenhauer.    

Nota Sobre Hegel

Não faz muito tempo era costume dos historiadores da filosofia dar aos imediatos sucessores de Kant – Fichte, Schelling e Hegel – tanto honra e espaço como a seus predecessores da filosofia moderna, desde bacon e Descartes até Voltaire e Hume. Hoje é nossa perspectiva um pouco diversa e saboreamos, talvez, vivamente as invectivas de Schopenhauer contra seus rivais triunfantes em concursos para cargos profissionais. Lendo Kant, diz, Schopenhauer, “o publico foi compelido a ver que aquilo que é obscuro nem sempre é destituído de significação”. Fichte e Schelling prevaleceram-se dessa obscuridade e teceram pomposas teias de aranha metafísicas. “Mas o cumulo da audácia de arquitetar puros disparates, de aglomerar emaranhamentos de palavras extravagantes e sem sentido, viu-se afinal em Hegel e tornou-se o instrumento da mais deslavada e geral mistificação de que já houve notícia, com um resultado que parecerá fantástico para a posteridade e constituirá como que o monumento da estupidez germânica” [*Caird, Hegel, na coleção Blackwood Philosophical Classics, pág. 7-8. A narração biográfica acompanha fielmente a dessa obra]. Não é interessante?

George Wihelm Friedrich Hegel nasceu em Sttutgart em 1770. Seu pai era um funcionário inferior no ministério das finanças do estado de Würtemberg – e o próprio Hegel cresceu  com os hábitos pacientes e metódicos daqueles empregados civis cuja modesta eficiência deu a Alemanha as cidades melhor administradas do mundo inteiro. O jovem era um infatigável estudante: fazia analises completas de todos os livros notáveis que lia, e copiava longos trechos. A verdadeira cultura, disse ele, deve principiar com o abstrair-se resolutamente de si próprio, como no sistema pitagorico de educação, no qual se exigia do aluno, durante os primeiros cinco anos, que se conservasse calado.

Seus estudos de cultura grega o entusiasmaram pela cultura grega, entusiasmo que persistiu ainda quando quase todos os mais se desvaneceram. “Ao nome da Grécia”, escreveu ele, “o alemão culto acha-se como em casa. Para os europeus a religião veio de outra fonte – do Oriente...;mas o que se vê aqui, o que se acha presente – ciência e arte, tudo o que satisfaz a vida e a eleva e adorna – trazemos, direta ou indiretamente, da Grécia”. Durante algum tempo Hegel preferiu a religião dos gregos ao cristianismo;e antecipou-se a Strauss e Renan escrevendo uma Vida de Jesus, na qual não se falava em milagres e Jesus era considerado como filho de Maria e de José. Mais tarde destruiu esse livro.

Na política também mostrou revolta de que dificilmente se suspeitaria lendo-se sua ulterior apologia do statu quo. Quando cursava a universidade de Tübingen, ele e Schelling defendiam calorosamente a Revolução Francesa e foram certa manhã, muito cedo, plantar uma Arvores da Liberdade na praça do mercado. “Com o banho da revolução”, escreveu Hegel, “a França libertou-se de muitas instituições que o espírito de seus homens já deixara para trás como seus sapatinhos de criança, e que por essa razão pesava sobre eles, como ainda pesa sobre outros, como plumagens sem vida”. Foi nesses dias esperançosos, “quando ser moço era coisa celestial”, que ele se enamorou, com Fichte, de uma espécie de socialismo aristocrático e se entregou com característico vigor a corrente romântica em que a Europa mergulhara.

Recebeu o grau em Tübingen, em 1793, obtendo um certificado que o dizia dotado de capacidade e caráter, bem preparado em teologia e filologia, mas sem aptidão para a filosofia. Era pobre, nesse tempo, e precisou ganhar a vida a lecionar em Berne e em Francfort. Foram os seus anos de crisálida;  enquanto a Europa se dilacerava em facções nacionalistas, Hegel ganhava forças e se desenvolvia. Então [1799] morreu-lhe o pai, e herdando quantia correspondente a cerca de 1.500 dólares, considerou-se rico e renunciou ao ensino. Escreveu a seu amigo Schelling para que o aconselhasse sobre onde morar e pediu-lhe um emprego que lhe pudesse proporcionar alimentação frugal, livros em abundancia e “ein gutes Bier”. Schelling recomendou-lhe Iena que era uma cidade universitária sob a jurisdição do Duque de Weimar. Em Iena, Schiller lecionava história, Tieck, Novalis e os Schlegels pregavam o romatismo; e Fichte e Schelling preparavam suas filosofias. Hegel lá chegou em 1801; em 1803 tornou-se professor da universidade.

Ainda se achava em Iena, em 1806, quando a vitória de Napoleão sobre os prussianos espalhou a confusão e o terror na pequena cidade universitária. Soldados franceses invadiram a casa de Hegel, o qual, como bom filosofo, deu aos calcanhares, levando consigo o manuscrito de seu primeiro livro importante. A Fenomenologia do Espírito. Ficou tão sem recursos durante algum tempo, que Goethe, autorizou Knebel a lhe emprestar alguns dólares para tirá-lo da miséria. Hegel escreveu quase amargamente a Knebel: ”Adotei como estrela guieira a frase bíblica, cuja verdade a experiência me fez reconhecer: - Procurai antes de tudo alimento e vestuário, que a isso se vos acrescentará o reino do Céu”.

Por espaço de algum tempo editou um jornal em Bamberg; depois em 1812, tornou-se diretor do ginásio de Nuremberg. Foi aí, talvez, que a necessidade de estoicismo para seu trabalho de dirigente lhe esfriou os ardores românticos, e o transformou, como a Napoleão e Goethe, em clássico retardatário numa era romântica. E foi ai que escreveu aquela sua Lógica [1812-1816],que seduziu a Alemanha pela ininteligibilidade e o fez obter a catedra de Filosofia em Heidelberg. Em Heidelberg compôs a imensa Enciclopédia das Ciências Filosóficas [1817], cujo mérito o fez ser promovido, em 1818, a professor da universidade de Berlim. Desde então até o fim da vida imperou no mundo filosófico tão indiscutivelmente como Goethe no da literatura e Beethoven no da musica. A data de seu nascimento era imediata a do nascimento de Goethe e a Alemanha, orgulhando-se de ambos criou em honra de ambos um duplo feriado anual.
Um francês pediu certa vez a Hegel que resumisse sua filosofia em uma sentença; e ele não se saiu tão bem da prova como o frade que respondeu singelamente, quando lhe pediram que definisse o cristianismo durante o tempo em que se pudesse equilibrar num só pé: “Ama o teu próximo como a ti mesmo”. Hegel preferiu responder em dez volumes; escritos e publicados, quando o mundo inteiro falava sobre sua obra, Hegel lastimou-se dizendo: ”Só um homem me compreende e esse mesmo não me compreende” [*Rigorosos Críticos, como se poderia esperar, contestam a autenticidade desta referencia].

A maioria dos seus trabalhos, assim como a dos de Aristóteles, consiste em notas de suas preleções; pior ainda, em notas tomadas pelos estudantes. Só a Lógica e a Fenomenologia foram de seu punho e são obras primas de obscuridade resultante do abstrato de matéria e da concisão de estilo, de uma extravagante terminologia original e de uma minudenciosa modificação de tudo o que expõe, numa riqueza gótica de clausulas restritivas. Hegel definiu sua obra como “uma tentativa para ensinar a filosofia a falar em alemão” [*Wallace, Prolegomenos a Lógica de Hegel, pág.16]. E conseguiu-o...

A Lógica é uma análise – não dos métodos de raciocinar, mas dos conceitos empregados no raciocínio. Estes, para Hegel, são as categorias que Kant denominou – Ser, Qualidade, Quantidade, Relação, etc. A primeira empreita da filosofia é dissecar estas noções básicas que tão a miúdo ocorrem em todos os nossos pensamentos. A mais esquiva de todas é a Relação; cada idéia é um grupo de relações; só podemos pensar em alguma coisa relacionando-a com alguma outra e percebendo-lhe as similitudes e diferenças. Uma idéia sem relações de qualquer espécie é uma idéia vazia; é isto o que significa ao dizer-se que “Puro Ser e Nada são a mesma coisa”; o Ser absolutamente destituído de relações em qualidades não existe, nem tem qualquer significado. Esta proposição conduz a uma infinita série de sutilezas, que por sua vez geram outras; e isto se mostrou ser ao mesmo tempo obstáculo e atrativo para o estudo das idéias de Hegel. 

De todas as relações a mais universal é a de contraste ou oposição. Cada condição do pensamento ou das coisas – cada idéia e situação no mundo – leva irresistivelmente a sua contrária e une-se em seguida com esta para formar um todo mais elevado ou mais complexo. Este “movimento dialético” apresenta-se em tudo o que Hegel escreveu. É esta, aliás, uma velha idéia, pressentida por Empédocles no “áureo meio” de Aristóteles, que escreveu “ser uno o conhecimento dos contrários”. A verdade [como um elétron] é uma unidade orgânica de elementos contrários. A verdade do conservantismo e do radicalismo é o liberalismo – espírito aberto e mão cauta – mão aberta e espírito cauto; a formação de grandes correntes de opiniões implica uma decrescente oscilação entre dois extremos – e em todas as questões debativeis veritas in médio stat. O movimento evolutivo é um continuo desenvolvimento de contrários, que se fundem e conciliam. Schelling tinha razão – existe uma subjacente “identidade dos contrários”; e Fichte também a tinha – a tese, a antítese e a síntese constituem a formula e o segredo de todo o desenvolvimento e de toda a realidade.

Pois não só as idéias que evoluem e se aperfeiçoam de acordo com este “movimento dialético”, e sim as coisas também; toda condição social política encerra uma contradição que a evolução deve transformar em unidade conciliadora. Desta forma, nosso presente sistema social origina, sem duvida, uma contradição auto-destruidora; o individualismo incentivador, necessário em um período de adolescência econômica e de recursos inexplorados, suscita, mais tarde, o aspirar pela cooperação da comunidade; e o futuro não mostrará a realidade presente nem o ideal visado, e sim uma síntese em que alguma coisa do primeiro e alguma coisa do segundo, reunidas, criarão um tipo mais elevado de vida. E esse estagio mais alto se desdobrará em uma fecunda contradição, fazendo subir a mais elevados níveis de organização, complexidade e unidade. O evolver das idéias é o mesmo que o das cosias; existe em cada caso uma progressão dialética da unidade através da diversidade para a diversidade  na unidade. O pensamento e o ser seguem as mesmas leis -  e a lógica e a metafísica constituem uma unidade.

O espírito é o órgão indispensável para a percepção deste processo dialético e desta unidade na variedade. A função do espírito, e a tarefa da filosofia, é descobrir a unidade que jaz potencialmente na variedade; a tarefa da ética é unificar o caráter e a conduta; e, a da política, unificar os indivíduos em um estado. O trabalho da religião é atingir e sentir aquele Absoluto em que todos os contrários se resolvem em unidade, na grande totalização de seres, na qual a matéria e o espírito, o sujeito e o objeto, o bem e o mal, se tornam uma unidade. Deus é o sistema de relações em que todas as coisas se movem e tem seu ser e significação. No homem o Absoluto eleva-se até a consciência de si mesmo e torna-se a Idéia Absoluta -  que existe, embora realizando-se como parte do Absoluto, transcendendo as limitações e finalidades individuais, e apreendendo, sob o conflito universal, a oculta harmonia das coisas. “A razão é a substancia do universo...;a finalidade do mundo é absolutamente racional” [*Hegel, Filosofia da Historia, ed. De Bohn, págs., 9,13].

Não se creia que o conflito e o mal sejam meras coisas negativas imaginárias; são bem reais; mas são, na perspectiva da sabedoria, estágios para a perfectibilidade e para o bem. Aquele conflito é a lei do desenvolvimento; o caráter forma-se nas tempestades e asperezas da vida; e um homem só atinge sua plena estatura moral por efeito de compulsões, responsabilidades, e sofrimentos. A própria dor tem sua razão de ser: é indicio de vida e estimulo para a reconstrução. A paixão tem também o seu lugar na razão das coisas: “nada de grande do mundo foi realizado sem paixão” [*Filosofia da Historia, pág.26]; e até a ambição egoísta de um Napoleão contribui inconscientemente para o desenvolvimento das nações.

A vida não foi feita para a felicidade e sim para as realizações. “A história do mundo não é o teatro da felicidade; os períodos felizes são suas paginas em branco, por serem períodos de harmonia” [*idem, pág.27]; e esta inglória ventura é indigna de um homem. Cria-se a historia somente nos períodos em que as contradições da realidade se dissipam pelo desenvolvimento, assim como as hesitações e desasos da mocidade se mudam na eficiência e na ordem da idade adulta.

A historia é um movimento dialético, quase uma série de revoluções em que povo após povo, gênio após gênio, se tornam o instrumento do Absoluto. Os grandes homens são menos os progenitores do que as parteiras do futuro, o que eles criam é concebido pelo ventre materno do Zeitgeist, o Espírito da Época. O gênio limita-se a colocar nova pedra no pular, a exemplo de outros; “feliz é o que tem a sorte de chegar por ultimo, pois ao colocar sua pedra fica rematada a abobada”. “Tais indivíduos não tinham consciência da Idéia geral que estavam a desenvolver; mas das exigências de seu tempo, intuíam o que para este constituía sua maturidade. Sua verdade era a verdadeira Verdade de sua época, de seu mundo; era, por assim dizer, a espécie da ordem imediata que já se achava  formada nas entranhas do tempo” [*Filosofia da Historia, pág.31].

Semelhante filosofia da historia parece conduzir a conclusões revolucionárias. O processo dialético muda o principio cardial da vida; nenhuma condição é permanente: em cada fase das coisas existe uma contradição que só o “conflito dos contrários” pode resolver.  Por isso, a mais profunda lei política é a liberdade – o caminho aberto para as mutações; a história é o crescente aumento da liberdade, e o estado é, ou deveria ser, a liberdade organizada.

Por outro lado, a doutrina de que “o real é racional” tem um tom conservador: a toda condição, embora destinada a desaparecer, assiste um divino direito, por ser fase necessária da evolução; de certo modo é brutalmente verdade que “tudo o que é, é racional”. E assim como a unidade é o alvo do desenvolvimento, a ordem é o primeiro requisito da liberdade.

Se Hegel propendia, em seus últimos anos, mais ao que sua filosofia subentendia de conservador do que de radical, foi parcialmente porque o Espírito da Época [para usar sua própria frase histórica] estava cansado de muitas mudanças. Após a revolução de 1830 ele escreveu: ”Afinal, depois de quarenta anos de guerra e de imenso caos, um velho coração pode rejubilar por ver o fim de tudo e o inicio de um período de tranqüila ventura” [*Em Caird, pág.93]. Não era muito lógico que o filosofo apologista da luta como dialética do desenvolvimento se tornasse o preconizador do estado de ventura; mas aos sessenta anos o homem tem o direito de desejar a paz. Não obstante, as contradições das idéias de Hegel eram muito grandes para que houvesse paz; por isso, na geração seguinte seus continuadores cindiram a fatalidade dialética em “Direita e Esquerda Hegeliana”. Weisse, e Fichte, mais jovem, acharam na teoria da racionalidade do real uma expressão filosófica da doutrina da Providencia e a justificação de uma política de absoluta obediência. Feuerbach, Moleschott, Bauer e Marx voltaram ao ceticismo e “criticismo mais elevado” da mocidade de Hegel e desenvolveram a filosofia da historia em uma teoria de lutas de classes, levado pela necessidade hegeliana ao “socialismo inevitável”. O absoluto que determinava a historia por meio do Zeitgeist, foi substituído por Marx pelos movimentos coletivos e forças econômicas que, a seu ver, são as causas básicas de toda mudança radical, quer no mundo das coisas, quer na vida das idéias. Dos ovos de Hegel, professor imperial, saíram os pintos do socialismo.

O velho filosofo acusou os radicais de sonhadores, e cuidadosamente ocultou seus primeiros ensaios. Aliou-se ao governo prussiano, bendisse-o como a ultima expressão do Absoluto e recozeu-se ao sol de suas mercês acadêmicas. Seus inimigos cognominaram-no o “filosofo oficial”. Hegel começou a considerar o sistema hegeliano como parte das leis naturais do mundo, esquecido de que sua própria dialética lhe condenava as idéias a transitoriedade e ao declínio. “Nunca filosofia alguma assumiu tom assim elevado e nunca suas regias regalias foram tão plenamente reconhecidas e asseguradas, como em 1830”, em Berlim [*Paulsen, Emanuel Kant, pág.385].

Mas Hegel envelheceu rapidamente nesses ditosos anos. Tornou-se distraído; certa vez entrou na sala de aulas calçado com uma botina apenas, tendo deixado a outra, sem que desse por isso, na lama da estrada. Quando a epidemia do cólera chegou a Berlim em 1831, seu corpo enfraquecido foi um dos primeiros a sucumbir. Após um só dia de doença passou súbita e tranqüilamente, enquanto dormia. Assim como no espaço de um ano ocorreram os nascimentos de Napoleão, Beethoven e Hegel, também no lapso de 1827 a 1832 a Alemanha perdeu Goethe, Hegel e Beethoven. Foi esse o fim de uma época – os últimos arrancos do maior século da Alemanha.
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G.R   

28 de abr. de 2011

Kant_Critica e Apreciação

Perguntemo-nos agora como subsiste ainda hoje, após tão fustigada pelas tormentas filosóficas de todo um século, esta complexa estrutura lógica, metafísica, psicológica, ética e política. Apraz-no dizer que grande parte dessa grande edificação ainda perdura e que a “filosofia critica” representa um sucesso de importância permanente na historia do pensamento humano. Mas já aluiram muitos detalhes e obras exteriores dessa estrutura.

Em primeiro lugar, é o espaço mera “forma de sensibilidade”, e sem realidade objetiva fora do espírito que o percebe? Sim e não. Sim: pois o espaço é um conceito vazio quando não contêm os objetos percebidos; “espaço” significa simplesmente que certos objetos estão, para o espírito que os percebe, em tal posição ou distancia, em relação a outros objetos percebidos; e não é possível nenhuma percepção exterior a não ser a dos objetos no espaço. O espaço é, então, seguramente, “uma forma necessária do senso externo”. E não: pois fatos espaciais, com a elipse anual percorrida pela natureza em torno do sol,embora verificáveis somente por um espírito, existem independentemente de qualquer percepção; o profundo e sombrio oceano azul já existia antes que Byron assim o chamasse e continuou a existir depois que o poeta deixou de viver. Nem é o espaço uma “construção” do espírito, mediante a coordenação de sensação sem dimensões; percebemo-lo diretamente por meio de nossa percepção simultânea de diferentes objetos e diversos pontos -  bem como quando vemos um inseto mover-se contra um fundo imóvel.

Similarmente: o tempo como sensação do antes e do depois, ou como medida do movimento é naturalmente subjetivo e altamente relativo; mas uma arvore envelhecerá e secará quer meçam, quer não meçam, quer percebam ou não percebam o lapso de tempo de sua duração. A verdade é que Kant, para fugir ao materialismo, sentia grande desejo de provar a subjetividade do espaço; receava o argumento de que, se o espaço é objetivo e material, Deus deve existir no espaço e ser, por conseguinte, espacial e material. Ele poderia contentar-se com o idealismo critico, que mostra que conhecemos primariamente toda a realidade como sensações e idéias nossas. A velha raposa abocou um pedaço maior do que o que podia mastigar. [*A vitalidade persistente da teoria do conhecimento, de Kant, patenteia-se pela sua associação total por parte de um cientista de espírito positivo como o falecido Charles P. Steinmetz:”Todas as nossas percepções sensoriais são limitadas pelos conceitos de tempo e de espaço e associadas aos mesmos. Kant o maior e o mais critico de todos os filósofos, nega que o tempo e o espaço resultem da experiência e mostra serem categorias – conceito com que nosso espírito reveste as percepções dos sentidos. A física moderna chegou, na teoria da relatividade, a mesma conclusão de não existirem o espaço e o tempo absolutos e sim que o tempo e o espaço existem unicamente quando preenchidos por coisas ou fatos – isto é, quando são formas de percepção” – Comunicado a Igreja Unitária, Schenectady, 1923].

Ele poderia, também, contentar-se com a relatividade da verdade cientifica, sem se esforçar para atingir a miragem do absoluto. Estudos recentes como os de Pearson na Inglaterra, os de Mach na Alemanha e de Henri Poincaré na França, concordam mais com Hume do que com Kant: toda ciência, inclusive a mais precisa matemática, é relativa em sua verdade. A própria ciência não se preocupa muito com esta matéria,contentando-se com um elevado grau de probabilidade. No fim de contas o conhecimento “necessário” talvez não seja necessário.

O grande mérito de Kant é haver mostrado, de uma vez por todas, que apenas conhecemos o mundo externo como sensação – e que o espírito não é simples e inerte tabula rasa, o paciente inativo da sensação, e sim um agente ativo, que seleciona e reconstrói a experiência quando esta surge. Podemos desfalcar a sua realização sem lhe danificar a grandeza essencial. Podemos sorrir, como Schopenhauer, de suas categorias a somarem uma dúzia exata, e tão bem acondicionadas em tríades e em seguida espichadas, contraídas e interpretadas torcida e implacavelmente para adaptar-se a todas as coisas e abrangê-las. E podemos até por em duvida o serem inatas essas categorias ou formas interpretativas do entendimento; talvez suceda assim com o individuo, conforme Spencer o admitiu, por terem sido adquiridas pela espécie – ou mesmo, o que é provável, o próprio individuo as poderia adquirir: as categorias podem ser sulcos do entendimento, hábitos de percepção e concepção produzidos gradualmente por sensações e percepções que automaticamente se dispõem – a principio desordenadamente, e em seguida por uma espécie de seleção natural de modos de arranjo -  em ordem e de modo adequado e esclarecedor. É a memória que classifica e interpreta as sensações convertendo-as em percepções e, as percepções, tornando-as em idéias; mas a memória é uma acessão. Aquela unidade de espírito que Kant supõe inata [a “unidade transcendental de apercepção”] é adquirida -  mas não por todos; e assim como se adquire, pode perder-se – pela amnésia, pela personalidade alternada ou pela demência. Os conceitos são uma elaboração e não um dom natural.

O século dezenove tratou com alguma rudeza a ética de Kant, sua teoria de um inato e apriorístico senso moral absoluto.A filosofia da evolução sugeriu irresistivelmente que o sendo do dever é uma sedimentação social no individuo; que é adquirido o conteúdo da consciência – apesar de ser inata a vaga tendência ao procedimento social. O eu moral, o homem social, não é uma criação especial provinda misteriosamente da mão de Deus e sim o produto de uma lenta evolução. A moral não é absoluta, e sim, um código de procedimento desenvolvido mais ou menos ao acaso para a sobrevivência do grupo e variável conforme a natureza e as circunstancias desse grupo; por exemplo: um povo cercado por inimigos considera amoral o individualismo balsâmico e diligente que uma nação nova e com segurança quanto a suas riquezas e, isolada, incentivará como fator necessário para a exploração dos recursos naturais e formação do caráter nacional. Nenhuma ação é boa por si mesma, como o supõe Kant [*Razão Prática, pág.31].

Deram-lhe pendor moralista sua mocidade pietista e sua vida penosa de trabalho constante e raros prazeres; chegou por fim a pregar o dever pelo dever, e caiu destarte inconscientemente, nos braços do absolutismo prussiano [*Confronte-se com  A Filosofia e a Politica Alemãs, do professor Dewey]. Existe algo do severo calvinismo escocês em sua oposição do dever a felicidade; Kant é o continuador de Lutero e da Reforma estóica, assim como Voltaire o é de Montaigne e da Renascença Epicurista. Encarnava uma severa reação contra o egoísmo e o hedonismo em que Helvécio e Hollbach refletiram a vida desses tempos desregrados, exatamente como Lutero reagira contra o luxo e a dissolução dos costumes da Itália Mediterrânea. Mas depois de um século de reação contra o absolutismo da ética de Kant, encontramo-nos novamente em um monturo de sensacionalismo e imoralidade urbanos, de implacável individualismo não refreado pela consciência democrática ou pela honra aristocrática; e talvez chegue breve o dia em que uma civilização a desintegrar-se acolherá de novo, satisfeita, o apelo kantiano ao cumprimento do dever.

A maravilha da filosofia de Kant é fazer vigorosamente reviver, em sua segunda Critica, as idéias religiosas de Deus, liberdade e imortalidade que a primeira Critica, aparentemente destruíra. “Na obra de Kant, diz o critico amigo de Nietzsche, Paul Ree, sentimos a impressão de estar em uma feira campezina. Podemos ali comprar tudo o que quisermos – a liberdade moral e a escravidão moral, o idealismo e a refutação do idealismo, o ateísmo e o bom Deus. Como na mágica do prestidigitador e do chapéu vazio, Kant tira de seu conceito do dever um Deus, a imortalidade e a liberdade – com grande surpresa para seus leitores” [*Em Untermann, Ciência e Revolução, Chicago, 1905, pág.81]. Schopenhauer também acha graça ao vê-lo deduzir a imortalidade, da necessidade de recompensa: “A virtude de Kant, que a principio o fez investir tão bravamente contra a felicidade, perde depois esse desassombro e por um triz não se desmanda” [*Paulsen, pág 317].

O grande pessimista acredita que Kant era verdadeiramente um cético e que, havendo deixado de crer, hesitava em destruir a fé popular, receoso das conseqüências na moral publica. “Kant parenteia a falta de alicerces da teologia especulativa e deixa intacta a teologia popular, chegando mesmo a estabelecê-la em mais nobre forma, como o é uma fé baseada no sentimento moral. Isto foi depois desvirtuado pelos filosofastros em apreensão racional e consciência de Deus, etc...;ao passo que o desejo de Kant, ao destruir erros antigos e veneráveis mas compreendendo o perigo de assim proceder, era, por meio da teologia moral, fornecer alguns frágeis e temporários suportes a fé, para que seus escombros não caíssem sobre ele, tendo, assim, tempo de fugir-lhes” [*O Mundo como Vontade e como Idéia, vol. II, pág.129].

Do mesmo modo, Heine, com intenção claramente humorística, apresenta-nos Kant, após ter destruído a religião, a sair a passeio com Lampe, o seu servidor: notando em dado momento os olhos do velho marejados de lagrimas, “Emanuel Kant compadece-se dele e mostra que, além de grande filosofo, é também um homem bom; e em tom entre bondoso e irônico fala assim: “Diz a razão que sem um Deus o velho Lampe não poderá ser feliz; é preciso, portanto, que eu faça garantir-lhe esse Deus” [*Citado por Paulsen, pág.8]. Se tais opiniões fossem verazes, deveríamos dar a segunda Critica o nome de Anestetica Transcendental.

Mas estas arriscadas reconstituições do Kant intimo não devem ser tomadas muito a sério. O tom ardente do ensaio sobre a “Religião dentro do Limite da Razão Pura” evidencia uma sinceridade muito grande para que seja posta em duvida; e a tentativa de substituir por uma base moral a base teológica da religião, e pelas normas de conduta  os seus pontos de fé, só poderia emanar de um espírito profundamente religioso. “É grande verdade”, escreveu ele a Moses Mendelssohn em 1766, “que penso com a mais forte convicção muitas coisas... que nunca terei a coragem de dizer; mas nunca direi coisa alguma a não ser aquilo que  penso” [*Em Paulsen, pág. 53].

É natural que conduza a interpretações contraditórias uma obra alentada e obscura como a grande Critica; uma das primeiras analises daquele livro, poucos anos após seu aparecimento, analise da autoria de Reinhold, disse o que ainda hoje poderemos repetir: “A critica da Razão Pura” foi proclamada pelos dogmatistas como a tentativa de um cético para abalar a certeza de todo o conhecimento; pelos céticos, como uma obra de arrogante presunção que empreende erigir nova forma de dogmatismo sobre as ruínas dos sistemas anteriores; pelos super-naturalistas, como um artifício habilmente maquinado para remover os fundamentos históricos da religião e estabelecer sem controvérsias o naturalismo; pelos naturalistas, como um novo suporte a moribunda filosofia da fé; pelos materialistas, como uma refutação idealista da realidade da matéria; pelos espiritualistas, como uma injustificável limitação da realidade do mundo corpóreo, rebuçado com o nome de domínio da experiência” [*Em Paulsen, pág.114]. A gloria do livro reside, verdadeiramente, em sua apreciação sob todos estes pontos de vista; e para uma inteligência penetrante como a do próprio autor, poderia perfeitamente antolhar-se que ele havia, de fato, reconciliado a todos aqueles, fundindo-os em um todo de complexa verdade, como até então a filosofia nada vira em toda a sua história.

Quanto a sua influencia, todo o pensamento filosófico do século XIX girou em torno das especulações de Kant. Depois dele a Alemanha inteira começou a falar sobre metafísica. Schiller e Goethe o estudaram; Beethoven citou com admiração suas  celebres palavras sobre as duas maravilhas da vida: “em cima, o céu estrelado, e dentro de nós a lei moral”; e Fichte, Schelling, Hegel e Schopenhauer criaram em rápida sucessão grandes sistemas filosóficos alicerçados no idealismo do velho sábio de Koenigsberg. Foi nesses fagueiros dias da metafísica alemã que Jean Paul Richter escreveu: “Deus deu aos franceses o domínio da terra; aos ingleses o do mar, e aos alemães, o do ar”.

A critica da razão de Kant e sua exaltação do sentimento prepararam o voluntarismo de Schopenhauer e de Nietzsche, o intuicionismo de Bérgson e o pragmatismo de Willian James; a sua identificação das leis do pensamento com as leis da realidade deu a Hegel um sistema completo de filosofia; e sua incognoscível “coisa em si” exerceu em Spencer mais influxo do que este teve consciência. Em muito da obscuridade de Carlyle poderemos rastrear uma tentativa de alegorizar a já obscura idéia de Goethe e Kant – de que as varias religiões e filosofias são apenas as vestes cambiantes de uma verdade eterna. Caird, Green, Wallace, Watson e Bradley e muitos outros ingleses se inspiraram na primeira Critica; e até Nietzsche, o feroz inovador, tira sua epistemologia da obra do “grande chinês de Koenigsberg”, cuja ética estática ele verbera com tamanha veemência. Após um século de lutas entre o idealismo de Kant, variamente remodelado, e o materialismo dos racionalistas, diversamente modificado, afigura-se que a vitória ficou do lado de Kant. Até o grande materialista Helvécio escreveu, paradoxalmente: “os homens, se me atrevo a dizer assim, são os criadores da matéria” [*Em Chamberland, vol I, pág.86]. A filosofia não mais será tão ingênua em seus tempos mais antigos e simples; será sempre diversa e mais profunda – porque Kant existiu.      

25 de abr. de 2011

Kant _Sobre a Política e a Paz Eterna

O governo da Prússia poderia ter perdoado a teologia de Kant, se esta não incorresse na culpa de também conter heresias políticas. Três anos depois de Frederico Guilherme II subir ao trono, a Revolução Francesa deixara abalados os tronos da Europa. E numa ocasião em que a maioria dos professores das universidades da Prússia se apressavam a defender a legitimidade da monarquia, Kant com sessenta e cinco anos acolhera jubiloso a Revolução, com lagrimas nos olhos dizendo a seus amigos: “Posso dizer com Simeão: - Senhor, teu servo agora se partirá em paz, porque seus olhos viram o seu Salvador” [*Wallace, pág.40].

Em 1784, Kant publicou breve exposição de sua teoria política, sob o titulo: O Principio Natural de Ordem Política considerado em conexão com a Idéia de uma História Universal Cosmopolita. Kant começa reconhecendo, na luta de cada um contra todos, que tanto impressionara Hobbes, o método com que a natureza desenvolve as latentes capacidades vitais; a luta é a companheira indispensável do progresso. Se os homens fossem totalmente sociáveis, o individuo conservar-se-ia na estagnação; requer-se certa mescla de individualismo e competição para que a espécie humana perdure e se desenvolva.

“Sem qualidades de natureza antissocial...os homens levariam a vida de pastor arcádico, em completa concórdia, contentamento e mutuo amor – mas, nesse caso, suas aptidões permaneceriam eternamente ocultas e em germe” [Kant, todavia, não era cego adepto de Rousseau]. “Agradeçamos, portanto, a natureza, por essa antissociabilidade, por essa invejosa emulação e vaidade,por essa insaciável ambição de riquezas e poder... O homem quer a concórdia; mas a natureza conhece melhor que ele o que convêm a espécie; e ela quer a discórdia, para que o homem seja impelido a desenvolver mais esforços e aperfeiçoar suas aptidões naturais”.

A luta pela existência não é, então, completamente um mal. Os homens, entretanto, percebem dever a luta restringir-se a certos limites e regular-se com regras, costumes e leis: daí a origem e o desenvolvimento da sociedade civil. Mas agora “a mesma antissociabilidade que forçou os homens a viverem em sociedade torna-se outra vez a causa de cada comunidade assumir a atitude de irrefreada liberdade em suas relações exteriores, isto é, como país, em relação a outros países; e por conseguinte cada país deve esperar dos outros os males que dantes molestavam os indivíduos, até que esses países sejam compelidos a formar uma união civil regulada por leis” [*A Paz Eterna e Outros Ensaios, Boston, 1914, pág.14].É tempo de, a exemplo dos homens, as nações saírem do estado natural de selvageria e convencionarem a paz entre si.

Toda a significação e todos os movimentos da historia convergem para uma redução cada vez maior da pugnacidade e da violência e para a continua ampliação dos domínios da paz. “Encarada como um todo,pode considerar-se a história da espécie humana como a realização de uma oculta finalidade da natureza, de criar uma organização política interna e externamente perfeita, por ser o único estado em que podem plenamente desenvolver-se todas as aptidões outorgadas por ela ao gênero humano” [*Idem, pág.19].Se não houver tal progredir, os trabalhos das sucessivas civilizações serão como os de Sisifo, que “roda continuamente um rochedo morro acima”, para fazê-lo despenhar-se quando está quase a atingir o cume. A história, então, outra coisa não seria além de uma demência infinita e cíclica; “e poderíamos supor, bem como o hindu, ser a terra o lugar da expiação de antigas culpas esquecidas” [*Idem, pág.58].

O ensaio sobre a “Paz Eterna” [publicado em 1795, quando Kant contava setenta e um anos] é um nobre desenvolvimento deste tema. Kant reconhece quão fácil é rirmo-nos a essa frase, por isso, abaixo de seu titulo escreve:”Estas palavras foram certa vez escritas por um estalajadeiro holandês numa tabuleta em que estava pintado um cemitério” [*A Paz Eterna e Outros Ensaios, pág.68].

Kant havia anteriormente lastimado, como, segundo parece, todas as gerações o poderiam fazer, que “nossos governantes não tenham dinheiro para empregar na instituição pública...porque todos os seus recursos estão desde já destinados a contribuir para o custeio da primeira guerra. [*Id.pag.21]. As nações não serão verdadeiramente civilizadas enquanto não suprirem todos os exércitos permanentes. [Manifesta se torna a audácia desta afirmativa se nos lembrarmos de que foi a própria Prússia, no reinado do pai de Frederico o Grande, o primeiro país que adotou a conscrição]. Os exércitos permanentes estimularam as nações a se excederem umas as outras em numero de homens armados, e neste caminho nunca se chega a um termo. Devido as despesas ocasionadas por esse estado de coisas, torna-se a paz, com o tempo, mais penosa do que uma guerra breve; e os exércitos permanentes serão assim causadores de guerras ofensivas, empreendidas com o fim de se livrarem de semelhante opressão” [*A Paz Eterna e Outros Ensaios, pág.71]. Pois em tempo de guerra o exercito se mantêm a si mesmo no campo, com requisições, boletos e saques -  no território inimigo de preferência, mas, sendo necessário, no do próprio país a que pertence; mesmo isto parece aos governos melhor do que mantê-lo com fundos públicos.

Em magna parte este militarismo, no julgar de Kant, era devido a expansão européia na América, África e Ásia, com as conseqüentes discórdias de ladrões a se disputarem a nova presa. “Se compararmos os exemplos barbaricos de inospitabilidade...com o procedimento desumano dos civilizados, e especialmente com o dos paises comerciantes de nosso continente, as iniqüidades que estes praticam, mesmo em seu primeiro contato com terras e gentes novas, enchem-nos de indizível horror; o simples ato de aproar a novas terras equivale para eles a uma conquista. Apenas descobertos, a América, as regiões dos pretos, as ilhas das especiarias, o cabo da Boa Esperança, etc., foram tratados como terras sem dono, pois os aborigenes contavam com zero ... E tudo isto era feito por nações que alardeavam religiosidade; desmandando-se em atrocidades, consideravam-se as verdadeiras zeladoras da fé ortodoxa” [*Id, pág.68]. A velha raposa de Koenigsberg não silenciara ainda!

Kant atribuía a cobiça imperialista a organização oligárquica das nações européias; os desposjos iriam pertencer a alguns poucos privilegiados, e continuavam consideráveis mesmo depois de repartidos. Caso se implantasse a democracia e todos participassem do poder publico, os despojos das rapinancias internacionais seriam tão subdivididos que constituiriam tentação resistível. Disto resulta que “o definitivo artigo primeiro para a Paz Eterna” é o seguinte: “Todas as nações terão constituição republicana e apenas se declararão guerras por efeito de um plebiscito de todos os cidadãos” [*Id, págs, 76-77]. Quando aqueles que deverão combater tiverem o direito de opção entre a guerra e a paz, não mais se escreverá com sangue a história. “Por outro lado, em uma organização em que os súditos não influem com seu voto nos atos do governo e que, por conseqüência, não é republicana, a declaração de guerra é, de todas as coisas do mundo, considerada como a de menor monta. Pois neste caso o governante não sendo um simples cidadão e sim o dono do país, nada sofrerá pessoalmente com ela; nem mesmo precisará sacrificar seus prazeres da mesa ou da caça, nem a vida de seus palácios suntuosos, festivais da corte, e coisas semelhantes. Pode, portanto, preferir a guerra por motivos mínimos, como se se tratasse apenas de uma caçada: e quanto ao que diz respeito a justificar-lhe a conveniência, deixar esse cuidado ao corpo diplomático, sempre pronto para tais empresas”. Como é de hoje esta verdade!

A vitória aparente da Revolução sobre os exércitos reacionários e, 1795 levou Kant a esperar que as republicas se espalhariam então por toda a Europa e surgiria a ordem internacional baseada em uma democracia sem servidão nem explorações e empenhada na manutenção da paz.

A função do governo é, afinal de contas, auxiliar e desenvolver o individuo e, não, usar e abusar dele. “Todo homem deve ser respeitado como um fim absoluto em si mesmo - e é um crime contra sua dignidade de ser humano utilizar-se do homem como de mero instrumento para algum fim no exterior” [*Em Paulsen, pág.,340]. Isto também é parte daquele imperativo e, desprezando-a, a religião será uma farsa hipócrita. Kant reclama, conseguintemente, a igualdade: não de aptidões, mas de oportunidades para o desenvolvimento e emprego das aptidões; combater todas as prerrogativas de nascimento e de casta e atribui todos os privilégios hereditários a violentos atos de conquista, no passado. Em meio do obscurantismo, reação e união de toda a Europa monárquica para esmagar a Revolução, Kant, apesar de seus setenta anos, toma partido pela nova ordem de coisas, pela implantação da democracia e liberdade em toda a parte. Nunca a idade provecta falou assim destemerosa com a voz da juventude.

Mas Kant se achava exausto; terminara sua carreira e findara sua campanha. Decaiu lentamente até a pueril senil que por fim se converteu em loucura mansa; pouco a pouco o abandonaram sua sensibilidade e faculdades; e, em 1894, com a idade de setenta e nove anos, morreu, plácida e naturalmente, como cai da arvore uma folha seca.

23 de abr. de 2011

Kant_Sobre a Religião e a Razão

Tudo isto não parece comum, tímido e conservador? Mas não era assim; ao contrário, esta arrojada negação da teologia “racional”, esta franca redução da religião a fé e esperança morais, provocou protestos de todos os alemães ortodoxos. Enfrentar este “forty-parson-power” [como lhe chamaria Byron] requeria mais coragem que a habitualmente associada ao nome de Kant.

Que era suficientemente intrépido, foi o que se provou cristalinamente quando deu a publico, aos sessenta e seis anos, sua Critica da Faculdade de Julgar e, aos sessenta e nove, A Religião dentro dos Limites da Razão Pura. No primeiro destes livros Kant volve a discutir o argumento da finalidade que, em sua primeira Critica, rejeitara por ser prova insuficiente da existência de Deus. Começa correlacionando a finalidade e a beleza; a beleza a seu ver é algo que revela proporção e unidade de estrutura, como pré-traçadas por uma inteligência. Observa de passagem [e Schopenhauer aqui bebeu bastante para a sua teoria da arte] que a contemplação de um fim harmônico dá sempre prazer desinteressado – e que “o interesse pela beleza da natureza por si mesma é sempre manifestação do bem” [* Critica da Faculdade de Julgar, num.29].

Muitos objetos naturais patenteiam tal beleza, harmonia e unidade, quase nos elevando a noção de um desígnio sobrenatural. Mas, por outro lado, diz Kant, existem na natureza muitos exemplos de desperdício e confusão, e inúteis repetições e multiplicações; a natureza conserva a vida, mas a custa de quanto sofrimento e quantas mortes! A aparência de uma finalidade exterior não é, por isso, prova concludente da Providencia. Os teólogos que tanto se utilizam desta idéia deveriam abandoná-la, e os cientistas que a abandonaram, deveriam retomá-la; é magnífico ponto de partida e conduz a centenas de revelações. Pois a finalidade existe, indubitavelmente, mas uma finalidade interna, de harmonia das partes em relação ao todo; e se a ciência interpretar as partes de um organismo em termos de sua significação em relação ao todo, verá nisto um admirável complemento para aquele outro principio heurístico – a concepção mecânica da vida -  que também é frutífero para descobertas, mas que, isolado, jamais poderá explicar nem mesmo o desenvolvimento de uma folha de relva. 

O ensaio sobre a religião é trabalho notável para um homem de sessenta e nove anos; é porventura a mais audaz de todas as obras de Kant. Da circunstancia de não se dever basear a religião na lógica da razão abstrata e sim na razão pratica do senso moral, conclui-se que quaisquer Bíblias ou revelações devem ser julgadas pelo seu valor moral, não podendo por si mesmas ser juizes de um código moral. As igrejas e os dogmas só tem valor enquanto auxiliam o aperfeiçoamento moral da humanidade. Quando credos ou cerimônias religiosas passam a valer mais do que a excelência moral como prova de religiosidade, é que a religião desapareceu.

A igreja é uma comunidade de pessoas [por mais espalhadas e divididas que sejam] unidas pelo culto a uma lei moral comum. Foi para estabelecer tal comunidade que Cristo viveu e morreu; foi esta a verdadeira igreja que ele edificou, igreja contrastante com o eclesiastismo dos fariseus. Mas outro eclesiastismo quase sossobrou esta nobre concepção. “Cristo aproximou da terra o reino de Deus, mas não foi compreendido e, em lugar do reino de Deus, foi o dos clérigos que se estabeleceu entre nós” [*Cristo em Emanuel Kant, de Chamberlain, vol.I, pág.510]. Os pontos de fé e os rituais substituíram novamente o viver virtuoso, e em vez de se ligarem pela religião os homens dividiram-se em mil seitas; e todas as modalidades de “extravagâncias pias” foram inculcadas como “uma espécie de cortesiana celeste: todos podem obter, por meio de lisonjas, as mercês do regedor do Céu” [*Em Paulsen, pág. 366].

Ainda mais: os milagres não servem de prova a uma religião, pois não podemos confiar nos testemunhos que os atestam; e a prece é inútil, se seu intuito for a alteração das leis naturais que governam todas as coisas. Finalmente, atinge-se o auge da perversão, quando a igreja se torna instrumento nas mãos de um governo reacionário; quando o clero, cuja função é consolar e guiar a humanidade sofredora com a fé, a esperança e a caridade religiosas, se torna o fator do obscurantismo teológico e da opressão política.

A audácia destas conclusões residia no fato de que fora justamente isto o que acontecera na Prússia. Frederico o Grande morrera em 1786 e a ele sucedera Frederico Guilherme II, a quem a política liberal de seu antecessor pareceu rescender impatrioticamente ao Racionalismo francês. Foi demitido Zedlitz, ministro da educação de Frederico, e nomeado Wöllner. Wöllner fora definido por Frederico como “um sacerdote pérfido e intrigante”, que repartia o tempo entre a alquimia e os mistérios rosacrucianos; e ascendeu ao poder por haver-se oferecido como “indigno instrumento” a nova política do monarca, de restaurar compulsoriamente a fé ortodoxa [*Enciclopédia Britânica, palavra “Frederico Guilherme II”].

Em 1788 Wöllner expediu um decreto proibindo ensinar-se nas escolas, ou nas universidades, idéias religiosas que se afastassem da forma ortodoxa do protestantismo luterano; criou rigorosa censura a toda espécie de publicações e determinou fosse demitido todo professor acusado de ensinar qualquer heresia. A principio não molestaram Kant, por ser velho e – como disse um conselheiro real – porque poucas pessoas o liam  e essas mesmas não o compreendiam. Mas o ensaio sobre a religião era compreensível; e, apesar de repassado de fervor religioso, trazia forte saibo à Voltaire; impossível escapar a nova censura. O Berliner Monatschift, que tencionava publicá-lo, recebeu ordem de não o fazer.

Kant procedeu então com energia e coragem dificilmente criveis em um homem já de setenta anos. Enviou o ensaio a alguns amigos de Iena para que o publicassem pela imprensa da universidade. Iena ficava fora da Prússia, e era governada por aquele mesmo Duque de Weimar que se mostrava tão dedicado a Goethe. O resultado foi Kant receber em 1794 uma eloqüente ordem oficial do rei da Prússia, formulada nestes termos: “A nossa mui alta pessoa desagradou grandemente observar que dais mau emprego a filosofia, fazendo-a solapar e destruir muitas das doutrinas fundamentais das Santas Escrituras e da cristandade. Exigimos, pois, imediatamente, claras explicações e esperamos que de futuro não mais daríeis causa a tal desagrado; e sim que cumprindo vosso dever, usareis de tal arte que nossos paternais desígnios sejam cada vez mais realizados. Se continuardes a resistir a esta ordem, podereis contar com desagradáveis conseqüências” [*Em Paulsen, pág.49].

Kant respondeu que todos os letrados tem o direito de formar seus juízos pessoais sobre matéria religiosa e de tornar conhecidas suas opiniões; não obstante isso, durante aquele reinado conservar-se-ia em silêncio. Alguns biógrafos, que podem ser, de longe, muito valentes, malsinaram-lhe esta concessão; mas devemos lembrar-nos de que Kant era septuagenário, de saúde melindrosa e não apto para a luta; além do que, já havia lançado ao mundo a sua mensagem.