28 de mai. de 2011

Spencer_Psicologia: A Evolução do Espírito

Os dois volumes dos Princípios de Psicologia [1873] são os mais fracos da série spenceriana.  Muito antes [1855] havia ele produzido uma vigorosa defesa do materialismo e do determinismo, obra da mocidade; os anos maduros, porém, fizeram-no trilhar mais prudentes veredas, e surgiram estas centenas de paginas penosissimas, mas que não iluminam. Aqui, mais que em qualquer outra obra, mostra-se rico de teorias e pobre de provas. Apresenta a teoria dos nervos originados do tecido intercelular conectivo; e a teoria da gênese do instinto pela mistura de reflexos e transmissão de caracteres adquiridos; e a teoria da origem das categorias mentais com base na experiência da raça; e a teoria do ‘realismo transfigurado’ [*Spencer significa com isto que embora os objetos em experiência possam muito bem ser transfigurados pela percepção, tem existência que não depende do que neles percebemos]; e cem outras que possuem todo o pode ofuscante da metafísica e pouco da virtude clarificante da psicologia experimental. Nestes volumes abandonamos a realística Inglaterra para um estagio de retorno a Kant.

O que na obra nos impressiona é que pela primeira vez na historia da psicologia encontramos um arranque resolutamente evolucionista, uma tentativa para explanações genéticas, um esforço para encaixar a estonteante complexidade do pensamento nas mais simples operações nervosas, e, finalmente, no movimento da matéria. É verdade que esse esforço falhou; mas quem não falou nesse passo? Spencer começa com um magnífico programa para o desenvolvimento dos processos donde evolveu a consciência; no fim é compelido a situar a consciência em toda a parte. Insiste na evolução continua, da nebulosa ao espírito, e por fim confessa que a matéria só é conhecida através do espírito. Talvez que os parágrafos mais significativos deste volume sejam os que a filosofia materialista é abandonada.

*Pode a oscilação da molécula ser representada na consciência lado a lado em um choque nervoso e serem ambos reconhecidos com um? Nenhum esforço nos habilita a assimilá-los. Que a unidade de sentimento nata tem de comum com a unidade de movimento torna-se mais do que manifesto quando os justapomos. E o imediato veredicto da consciência assim dado pode analiticamente justificar-se...porque é admissível a concepção de uma molécula oscilante construí-la de muitas unidades de sensação [i.é., nosso conhecimento da matéria construído de unidades do espírito – sensações, memórias, idéias]. Fossemos nós compelidos a escolher entre duas alternativas – fenômeno mental trasladado para fenômeno físico ou vice-versa, e esta ultima nos pareceria a mais aceitável.

Não obstante, há uma evolução do espírito; um desenvolvimento de modos de repercussão do simples para o complexo, do reflexo para o tropismo do instinto – através da memória e da imaginação ao intelecto e a razão. Para o leitor que atravesse vivo essas 1.400 paginas de analise fisiológica e psicológica ressalta uma poderosa intuição da continuidade da vida e do espírito; esse leitor verá, como em filme de câmera lenta, a formação dos nervos, o desenvolvimento dos reflexos adaptativo e dos instintos, e a produção da consciência e do pensamento em conseqüência do choque de impulsos contrário. “A inteligência não possui graus distintos, nem é constituída de faculdades independentes; suas mais altas manifestações são o efeito de uma complicação que se formou insensivelmente dos mais simples elementos”. Não existe hiato entre o instinto e a razão; instinto e razão constituem um ajustamento de relações internas e externas, com diferença apenas de grau; as relações a que o instinto atende são como estereotipadas e simples, e as que a razão atende são comparativamente novas e complexas. Uma ação racional é simplesmente uma replica instintiva que sobreviveu na luta com outras replicas instintivas pela situação; “deliberação” é meramente a luta entre si de impulsos rivais. No fundo, razão e instinto, espírito e vida, são um.

Vontade é um termo abstrato que damos a soma dos nossos impulsos ativos; e volição, a natural entrada em ação de uma idéia. Uma idéia é ação no seu primeiro estágio; e uma ação no ultimo estagio é idéia. Similarmente, uma emoção é o primeiro estagio de uma ação instintiva, e a expressão da emoção é o prelúdio da replica completa; o ranger dos dentes na cólera sugere o despedaçar do inimigo, que era o termo natural de semelhante começo. “Formas de pensamento”, como a percepção do espaço e do tempo, ou as noções de quantidade e causa, que Kant supunha inatas, são meros modos instintivos de penar. E os instintos são hábitos adquiridos pela raça, porém, oriundos nos indivíduos, de modo que estas categorias são hábitos mentais lentamente adquiridos no decurso da evolução que agora fazem parte da herança intelectual. Todos esses velhos enigmas da psicologia podem ser explicados pela “herança de modificações continuamente acumuladas”. Talvez sejam asserções assim categóricas que tornam estes laboriosos volumes questionáveis e talvez inúteis.

Spencer_ Biologia: A Evolução da Vida

O segundo e terceiro volumes da Filosofia Sintética apareceram em 1827 sob o titulo de Princípios da Biologia. Revelaram as naturais limitações de um filósofo que invade o campo do especialista; mas os erros de detalhes desaparecem diante das luminosas generalizações que deram nova unidade e inteligibilidade a vastas áreas do fato biológico.

Spencer começa com a famosa definição: “Via é um continuo ajustamento de relações internas e relações externas”. A vida completa depende do completo dessa correspondência e a vida perfeita depende do perfeito dessa correspondência. A correspondência não é simples adaptação passiva; o que distingue a vida é o ajustamento das relações internas em antecipação de uma mudança nas relações externas, como quando um animal se agacha para evitar um golpe ou um homem faz fogo para aquecer seu alimento. O defeito da definição jaz não somente na sua tendência para desprezar a atividade remodeladora que o organismo exerce sobre o meio ambiente, mas também no não explicar que poder sutil é esse que habita um organismo a fazer esses proféticos ajustamentos característicos da vitalidade. Em um capitulo adicionado a edições posteriores Spencer foi forçado a discutir o ‘elemento dinâmico da vida’, e a admitir que sua definição não havia apreendido a natureza da vida. “Somos obrigados a confessar que a Vida em sua essência não pode ser concebida em termos físico-químicos”. O filosofo não calculou como essa admissão iria ser prejudicial para a unidade do seu sistema.

Assim como Spencer vê na vida do individuo um ajustamento de relações internas e externas, assim também vê na vida das espécies um notável ajustamento da fertilidade reprodutiva as condições do habitat. A reprodução surge originalmente como uma readaptação da superfície nutritiva a massa nutrida; o crescimento da ameba, por exemplo, envolve um aumento da massa muito mais rápido que o aumento da superfície através da qual a massa recebe sua nutrição. Divisão, abotoamento, formação de esporos e reprodução sexual tem isto de comum, que a proporção da massa para a superfície se reduz e o equilíbrio nutritivo se restaura. Daí o crescimento do organismo individual ser perigoso além de um certo limite; e daí o crescimento normal ceder o passo, depois de certo tempo, a reprodução.

Na media o crescimento varia inversamente proporcional ao gasto de energia; e a reprodução varia inversamente proporcional ao grau de crescimento. “E é sabido pelos criadores que se uma égua reproduzir em sua fase de potranca nunca atingirá o crescimento normal...Ao contrário, animais castrados, capões e principalmente gatos, freqüentemente se tornam maiores que os normais não mutilados”. A relação da reprodução tende a cair a medida do desenvolvimento do progresso individual. “Quando por fraqueza de organização a capacidade de enfrentar perigos externos é menor, torna-se necessária uma grande fecundidade para compensar a mortalidade conseqüente; de outro modo a raça depereceria. Quando, ao invés, altas faculdades proporcionam maior capacidade de preservação, uma baixa correspondência na fecundidade é requerida”. Para que o passo da multiplicação não exceda as possibilidades de alimento. Em geral, pois, existe uma oposição de individuação e gênese, ou de desenvolvimento individual e fecundidade. A regra opera nos grupos e espécies com mais regularidade do que nos indivíduos; quanto mais altamente desenvolvido o grupo ou a espécie, mais baixo será o índice de natalidade. Mas também funciona para a media dos indivíduos. Por exemplo, o desenvolvimento intelectual parece hostil a fecundidade. “Onde excepcional fecundidade existe, existe também frouxidão de espírito; e quando, durante a educação, ocorre excessivo dispêndio de energia mental, segue-se uma completa ou parcial infecundidade. Daí o especial tipo de evolução do homem daqui para diante, e que, mais que qualquer outra causa, poderá trazer declínio ao seu poder de reprodução”. Os filósofos são notoriamente de fraca prole. Na mulher, por outro lado, o advento da maternidade traz diminuição da atividade intelectual; e talvez sua mais breve adolescência seja devida ao sacrifício precoce à reprodução.

A despeito desta adaptação do índice de nascimento as necessidades da sobrevivência do grupo, a adaptação nunca é completa e Malthus tinha razão no seu principio geral de que a população do globo tende a sobre-exercer os meios de subsistência. “Desde os começos esta pressão de densidade da população tem sido a causa próxima do progresso. Produziu de começo a difusão das raças. Compeliu o homem a abandonar os hábitos predatórios e a fazer Levou-o a arrotear toda a superfície da terra. Forçou-o a vida em sociedade e desenvolveu os sentimentos sociais. Estimulou o melhoramento progressivo da produção e aumentou a habilidade e a inteligência. É a causa principal da luta pela vida por meio da qual os mais aptos sobrevivem elevando assim o nível da espécie.

Se o domínio dos mais aptos é devido principalmente a variações espontâneas favoráveis ou a uma parcial herança de caracteres, ou de capacidades adquiridas repetidamente por sucessivas gerações, é ponto sobre que Spencer não dogmatizou; aceitava alegremente a teoria de Darwin, mas sentia que certos fatos ficavam inexplicados e compeliam a uma aceitação das vistas de Lamarck modificadas. Spencer defendeu Lamarck vigorosamente na sua controvérsia com Weismann, e apontou certos defeitos da teoria de Darwin. Naqueles dias estava Spencer quase que só ao lado de Lamarck; e é de notar que entre os neolamarckeanos de  hoje se incluem descendentes de Darwin, ao passo que os maiores biologistas ingleses opinam que a teoria particular de Darwin sobre a evolução [não a teoria geral] deve ser abandonada [*Comunicação de Sir Win. Bateson a América Association for the Advancemente of Science_Toronto, dezembro, 1921].   

26 de mai. de 2011

Spencer _Primeiros Princípios

1]_O Incognoscível
“Freqüentemente esquecemos”, diz Spencer na abertura do livro, “que não somente há uma alma de bondade nas coisas más como também uma alma de verdade nas coisas errôneas”. Propõe-se, portanto, examinar as idéias religiosas com o intento de encontrar o coração de verdade que sob as formas variáveis de tantos credos deu a religião o seu persistente poder sobre a alma humana.

O que imediatamente encontramos é que cada teoria da origem do universo nos arrasta a inconcebilidade. O ateísta procura pensar de um mundo que existe por si, não causado  e sem começo; mas não podemos conceber nada sem começo nem causa. O teista apenas recua a dificuldade; e para o teólogo que diz: “Deus fez o mundo”, surge a pergunta irrespondível da criança: “E quem fez Deus?” As idéias ultimas das religiões são logicamente inconcebíveis.

As idéias ultimas da ciência situam-se igualmente para além da concepção racional.  Que é matéria? Reduzimo-la a átomos e somos forçados a dividir o átomo como dividimos a molécula; e caímos no dilema da matéria infinitamente divisível, o que é inconcebível, ou na divisibilidade limitada, que é também inconcebível. Assim também com a divisibilidade do espaço e do tempo, noções também inconcebíveis pela razão. O movimento está envolto em uma tríplice obscuridade desde que implica mudança da matéria no tempo e no espaço. Quando analisamos resolutamente a matéria nada encontramos senão força – força que impressiona os nosso sentidos ou força que resiste aos nossos órgãos de ação; e quem poderá dizer que é a força? Deixando a física para penetrar na psicologia, vemos chocar-nos com o espírito e a consciência; e aqui os enigmas ainda são maiores. “As idéias ultimas da ciência, pois, consistem em representações de realidade que não podemos compreender...Em todos os rumos as investigações dos cientistas colocam-no diante de um enigma insolúvel que lhe faz ver a grandeza e a pequenez do intelecto humano – seu poder de jogar com tudo quanto cai dentro da zona da experiência e sua fraqueza quando passa daí. O que o cientista verdadeiramente sabe é que na sua natureza ultima nada pode ser conhecido”. E para usar a expressão de Huxley – a única filosofia séria é o agnosticismo.

A causa comum destas obscuridades reside na relatividade de todo conhecimento. “Pensar sendo relacionar, nenhum pensamento exprime senão relações...O intelecto sendo afeiçoado unicamente por fenômenos afim de lidar com fenômenos, resulta absurdo tentar usá-lo para qualquer coisa que não seja fenômeno” [*Isto vem inconscientemente de Kant e antecipa Bérgson]. E, todavia, o relativo é fenomenal, como as palavras o estão dizendo, implicam alguma coisa além deles, alguma coisa ultima e absoluta. Observando nossos pensamentos vemos quão impossível é libertar-nos da consciência de uma Realidade jacente atrás das Aparências, e como desta impossibilidade resulta nossa fé indestrutível nessa Realidade. Mas que realidade é essa, não podemos saber.

Deste ponto de vista a reconciliação entre a ciência e a religião torna-se possível. “A verdade geralmente jaz na coordenação de opiniões antagônicas”. Admita a ciência que suas “leis só se aplicam aos fenômenos e ao relativo. Cesse a religião de figurar o Absoluto como um homem em ponto grande ou muito pior, qual monstro traidor e sanguinário, que arde “em uma fonte de adulação que seria repugnante em uma criatura humana comum”. Que a ciência cesse de negar a deidade ou de tomar o materialismo como liquido. Espírito e matéria são por igual fenômenos relativos, o duplo efeito de uma causa ultima cuja natureza permanece desconhecida. A admissão deste Poder Inescrutável é o núcleo central de verdade de cada religião e o começo de toda filosofia.

2]_Evolução
Havendo indicado o incognoscível, a filosofia volta o rosto para o que pode conhecer. Metafísica: miragem. Como disse Michelet, consiste na “arte de nos enganar a nós mesmos -  com método”. O campo real da filosofia jaz na totalização e unificação dos conhecimentos científicos. “Conhecimento no grau mais inferior é o conhecimento não unificado; a ciência, um conhecimento unificado; filosofia, o conhecimento totalmente unificado; Essa completa unificação requer um principio universal que inclua em si toda a experiência e trace as feições essenciais de todo o conhecimento. Existe um principio assim?

Podemos talvez aproximar-nos desse principio unificando as mais altas generalizações da física. Há a indestrutibilidade da matéria, a conservação da energia, a continuidade do movimento, a persistência das relações entre as forças [i.é, a inviolabilidade das leis naturais, a transformabilidade e equivalência das forças [mentais e físicas] e há o ritmo do movimento. Esta ultima generalização, ainda não usualmente reconhecida, deve ser apenas mencionada. Toda a natureza é rítmica, das pulsações do calor ás vibrações das cordas do violino; das ondulações da luz, do calor e do som ao movimento das marés; da periodicidade do sexo á periodicidade dos planetas, cometas e estrelas; da alteração da noite e do dia à sucessão das estações; das oscilações das moléculas ao surto e queda dos povos e ao nascimento e morte dos astros.

Todas estas ”leis do cognoscível” podem reduzir-se a lei final da persistência da força. Mas existe algo estático e inerte neste principio; ele não insinua o segredo da vida. O principio dinâmico da realidade, qual é ele? Qual a formula do crescimento e da decadência das coisas? Deve ser uma formula de evolução e dissolução, porque “uma história completa de tudo deve necessariamente incluir, primeiro, o aparecimento no imperceptível e depois o desaparecimento no imperceptível”.

E Spencer nos apresenta a sua famosa formula da evolução que nos fez o intelecto europeu ofegar e para cuja explanação foram exigidos dez volumes e quarenta anos de trabalho. “A evolução é uma integração de matéria e uma concomitante dissipação de movimento, durante a qual a matéria passa da homogeneidade, incoerente e indefinida para uma heterogeneidade definida e coerente; e no decorrer da qual o movimento sofre uma transformação paralela”. Que quer isto dizer?

O crescimento dos planetas a partir das nebulosas; a formação dos oceanos e montanhas; o metabolismo dos elementos pelas plantas e dos tecidos animais pelo homem; o desenvolvimento do coração no embrião e a fusão dos ossos depois do nascimento: a unificação de sensações e memórias em pensamentos e a unificação do conhecimento em ciência e filosofia; o desenvolvimento de famílias em clans e gentes e cidades e estados e alianças e na “federação do mundo”: eis a integração da matéria – a agregação de elementos separados em massas e grupos e todos. Tal integração envolve, sem duvida, uma redução de movimento nas partes como o poder crescente do estado diminui a atividade do individuo; mas ao mesmo tempo dá as partes uma interdependência, um tecido protetivo de relações que constitui “coerência” e promove sobrevivência do todo. O processo também traz uma limitação maior de formas e funções: a nebulosa é informe e no entanto desse informe procedem a regularidade elíptica dos planetas, as linhas agudas das cordilheiras, a forma especifica e o caráter dor organismos e órgãos, divisão do trabalho e a especialização das funções nas estruturas fisiológicas e políticas etc. E as partes deste todo integrador tornam-se não meramente definidas mas diversas e heterogêneas  e natureza e operação. A nebulosa inicial é homogênea, i. e., consiste de partes que são as mesmas; logo, porém, se diferenciam em gazes e líquidos e sólidos; a terra aqui esverdece de plantas, ali branqueia nos topos das montanhas ou azula na amplidão dos mares; a vida envolvente gera de um relativamente homogêneo protoplasma os vários órgãos da nutrição, da reprodução, locomoção e percepção; a linguagem enche continentes inteiros de dialetos; uma ciência a principio única gera cem outras e o folclore de uma nação floresce nas milhares de formas da arte literária; a individualidade cresce, o caráter acentua-se e cada povo ou raça desenvolve o seu gênio particular. Integração e heterogeneidade, agregação das partes em todos cada vez mais amplos e diferenciação de partes em formas cada vez mais variadas; eis o núcleo da órbita da evolução. O que quer que passe da difusão para a integração e a unidade, e da simplicidade homogênea para uma complexidade diferenciada [por ex., a América, 1600-1900], está na correnteza da evolução; o que quer que seja que volte da integração a difusão e da complexidade a simplicidade [por ex., a Europa, 200-600], está em curso de dissolução.

Não contente com esta formula sintética Spencer procura mostrar como por necessidade inevitável ela decorre da operação natural das forças mecânicas. Há, primeiro, uma certa ‘instabilidade do homogêneo”: i., é, partes similares não podem permanecer similares porque são desigualmente sujeitas a forças externas: as partes exteriores, por exemplo, são breve atacadas, como as cidades das costas durante as guerras;  e a variedade de ocupações molda homens similares nas diferenciações de uma centena de misteres e ofícios.  Há, aqui, uma “Multiplicação de Efeitos”: uma causa pode produzir uma larga variedade de resultados e trabalhar na diferenciação do mundo;  uma expressão imprópria, como no caso de Maria Antonieta, ou uma palavra truncada, como no telegrama de Sem, ou um vento, como em Salamina, podem representar um papel sem fim na história. E há a lei da “Segregação”: as partes de um todo relativamente homogêneo, lançadas em áreas diferentes, resultam em virtude de diversidade do meio-ambiente, em produtos dissimilares -  como os ingleses se tornam americanos, canadenses ou australianos de acordo com o gênio do lugar. De muitos modos as forças da natureza constroem a variedade deste mundo envolvente.

Mas, por fim, e de modo inevitável, vem o “Equilíbrio”. Cada movimento sendo movimento contra resistência, deve cedo ou tarde chegar a um termo; cada oscilação rítmica [a não ser que externamente reforçada] sofre alguma perda de passo ou amplitude. Os planetas giram, ou girarão, em órbita menor do que já giraram; o sol brilhará com menos luz e irradiará menos calor do que já brilhou e irradiou séculos passados; a fricção das marés retardará a rotação da terra. Este globo que trepida e murmura com milhões de movimentos e se expande em milhões de formas tumultuosas de vida, mover-se-á algum dia mais lentamente em sua órbita e suas partes; o sangue correrá menos tépido e mais lento em nossas veias ressecas; pararemos de correr; como raças moribundas, pensaremos no céu em termos de repouso, não de vida; sonharemos o Nirvana. Gradualmente, e depois rapidamente, o equilíbrio se tornará dissolução, o triste epílogo da evolução. As sociedades se desintegrarão, massas humanas emigrarão, cidades voltarão a campos de vida agrícola; nenhum governo será bastante forte para manter as partes unidas; a ordem social cessará e se tornará apenas memória. E também no individuo a integração cederá o lugar a uma desintegração; e esta coordenação chamada vida passará para a difusa desordem que é a morte. A terra tornar-se-á um caótico cenário de decadência, um sinistro drama de energia em irreversível degradação; e por vim voltará ao pó ou nebulosa donde saiu. O ciclo da evolução e dissolução estará completo. Começará outro, e assim indefinidamente; mas o evolver será sempre este. Memento mori, está escrito no rosto da vida – e cada nascimento é o inicio de uma decadência e morte.

Os Primeiros Princípios constituem um magnífico drama que narra com serenidade clássica a história do surto e da queda, a evolução e dissolução dos planetas e da vida do homem; um drama trágico, porém, e para o qual cabe como epílogo a palavra de Hamlet – “O resto é silêncio”. Haverá nada mais natural que homens e mulheres, nutridos de fé e esperança, se rebelassem contra este sumário da existência? Sabemos que temos de morrer; mas como isto é coisa que vem por si, preferimos pensar na vida. Em Spencer há um senso quase Schopenhaueriano da futilidade do esforço. No fim da sua carreira triunfal exprimiu o sentimento de que a vida não valia a pena de ser vivida. Minava-o a doença dos filósofos, que é ver tão longe que todas as pequenas coisas agradáveis da existência passam ante seus olhos inapercebidas.

Spencer estava certo de que os homens desdenhariam aprovar um credo cujas ultimas palavras não eram Deus e Céu, mas equilíbrio e dissolução; e ao concluir a primeira parte de sua obra defendeu com desusada eloqüência o seu direito de expor aquelas sombrias verdades.

*Quem quer que com medo de mostrar-se muito adiante do seu tempo, hesite em enunciar o que julga a verdade, pode sossegar vendo os seus atos de um ponto de vista impessoal. Recorde-se que opinião é agencia através da qual o caráter adapta a si arranjos externos e que sua opinião necessariamente forma parte dessa agencia -  é uma unidade de força constituindo com outras unidades que tais o poder que opera as mudanças do mundo; e compreenderá que pode muito bem enunciar suas convicções intimas deixando que produzam os efeitos que produzirem. Não é sem fundamento que o homem tem simpatias por alguns princípios e repugnância por outros.Com toda a sua capacidade e aspirações e fés, ele não é um acidente, mas um produto da época. Ao mesmo tempo que é um filho do passado e um pai do futuro; e seus pensamentos formam uma prole que ele não pode permitir que pereça. Igual a todos os outros homens, deve considerar-se uma das inumeráveis agencias através das quais atua a Causa Desconhecida; e quando a Causa Desconhecida nele produz uma certa fé, está ipso-facto autorizado a professar e agir de acordo com ela...O sábio não considera adventícia a fé que o anima. A mais alta verdade que vê, ele a enunciará sem temor, sabendo que, venha o que vier, está representando com honestidade o seu papel no mundo; sabendo que, se pode conseguir o que se mira, bem; e se não o pode, igualmente bem -  embora não tão bem. 

12 de mai. de 2011

Spencer_Dados Biográficos

Nasceu em Derby, em 1820. De ambos os lados, pais não conformistas ou “Dissenters”. A avó paterna fora devotada adepta de John Wesley; seu tio paterno, Thomas, embora sacerdote anglicano, chefiou um movimento wesleyano dentro da Igreja, nunca assistiu a concertos ou peças de teatro e tomou parte ativa nos movimentos políticos. Este impulso para a heresia tornou-se mais forte no pai, culminando no quase obstinado individualismo de Herbert Spencer. Seu pai jamais recorreu ao sobrenatural para a explicação do que quer que fosse e viu-se acoimado por alguém de suas relações como “homem sem religião” de qualquer espécie [embora Spencer considerasse isso exagero]” [*Spencer: Autobiografy]. Era, sim, inclinado à ciência e escrevera uma Inventional Geometry; na política foi um individualista como o filho e “jamais tirava o chapéu para alguém,fosse lá quem fosse”. “Se não podia responder a alguma pergunta que minha mãe lhe fazia, calava-se sem entrar em indagações. Foi assim durante a vida inteira”. Isto nos faz lembrar da resistência de Herbert Spencer em seus últimos anos contra a extensão das funções do estado.

O pai, bem como um tio e avô paterno, foram professores em escolas particulares, mas apesar disso o filho, destinado a ser o maior filosofo inglês do século, permaneceu ineducado até os quarenta anos. Spencer era preguiçoso e seu pai indulgente. Por fim, aos treze anos, foi enviado a Hinton para estudar com o seu tio, homem de reputação severa. O menino, porém, fugiu e regressou a casa paterna em Derby, caminhando 48 milhas no primeiro dia, no segundo e 20 no terceiro, alimentando-se de um pouco de pão e cerveja. Não obstante, tornou-se para Hinton algumas semanas mais tarde e lá permaneceu três anos. Foi o único estagio escolar sistemático de sua vida. Mais tarde não pode dizer o que lá aprendeu; não aprendera nem historia, nem ciências naturais, nem literatura. E diz com perceptível orgulho: “Nem na juventude, nem na mocidade recebi jamais uma só lição de inglês – e que eu tenha vivido até agora sem nenhum conhecimento formal de sintaxe é fato que deve ser conhecido, visto como contrária dogmas universalmente aceitos”. Na idade de quarenta anos procurou ler a Iliada, mas “logo no começo compreendi o árduo da tarefa e senti que pararia uma boa soma para me libertar da leitura do resto”. Collier, um dos seus secretários, conta que Spencer jamais concluía a leitura de um livro de ciência [*Royce:Herbert Spencer]. Ainda nos seus campos favoritos jamais se impunha instrução sistemática. Queimou o dedo e teve varias explosões nas suas experiências químicas; caçava bichinhos em redor da escola e em casa, e aprendeu alguma coisa de estratigrafia e fosseis em seus trabalhos de engenharia civil; no resto foi apanhando sua ciência onde e como pode. Até os trinta anos jamais havia pensado em filosofia. Por essa idade leu Lewes e experimentou passar para Kant; vendo, porém, logo no começo, que Kant considerava o espaço e o tempo como percepções dos sentidos e não coisas objetivas, decidiu que o filosofo alemão era um idiota e jogou o livro para um canto. Conta o seu secretário que Spencer compôs o primeiro livro, Estática Social, “sem nada ler de tica senão um velho e esquecido livro de Jonathan Daymond”. E escreveu a sua Psicologia apenas com algumas leituras de Hume, Mansel e Reid; e sua Biologia, depois de ler unicamente a Filosofia Comparada de Carpenter [não lera a Origem das Espécies]; e sua  Sociologia, sem ler Comte ou Tylo; e sua Ética, sem ler Kant, Mill ou qualquer outro moralista afora Sedgwick. Que contraste com a incansável educação de John Stuart Mill!

Onde, então, encontrou Spencer os milhares de fatos de que lançou mão para documentar milhares de asserções? Spencer “picked them up” -  caçava-os na maior parte pela observação direta em vez de em livros. “Sua curiosidade estava sempre alerta e vivia ele chamando a atenção dos companheiros para algum fenômeno notável até então só observado pelos seus olhos”. No Athenaeum Club sugava Husley e outros amigos de todos os conhecimentos especializados que possuíam; e percorria as publicações recebidas pelo clube, como antes o fizera com as que passavam pelas mãos de seu pai, com destino a Philosophical Society, de Derby – “Corria o olhar de lince sobre tudo quanto era fato aproveitável para o seu  moinho”. Havendo determinado o que queria fazer, e tendo encontrado a idéia central, Evolução, que seria o pivô de toda a sua obra, seu cérebro agia com imã para qualquer fato que lhe aproveitasse – e com espantosa capacidade ordenadora classificava automaticamente o material a medida que ia entrando. Não admira que os proletários e homens de negócios os ouvissem com encanto; era Spencer um cérebro do mesmo tipo – estranho a cultura livresca, inocente de “cultura”, mas fortemente dotado da capacidade de conhecimento positivo do homem que aprende no trabalho e na vida.

Porque Spencer trabalhava par viver, havendo a sua profissão intensificado a tendência pratica do seu pensamento. Era “supervisor” de estradas de ferro e pontes – engenheiro, em suma. Lidou com muitas invenções; todas falharam, mas na Autobiografia olha-as com amor de pai com filhos inválidos; as paginas dessas memórias estão cheias de patentes de depósitos de sal, cântaros, extintores de vela, cadeiras de aleijados, e que tais. Como é freqüentemente na mocidade, também adotou novos regimes de alimentação, havendo sido vegetariano em certa época; mas abandonou o regime ao ver um vegetariano atacado de anemia e ao perceber que próprio andava a perder em vigor. “Vi-me forçado a refazer o que havia escrito na minha fase vegetariana por estar a sentir-me mais fraco”. Nesse período Spencer estava sempre pronto para promover experiências; pensou em emigrar para Nova Zelândia, esquecido de que os países novos não são próprios para a filosofia. Fez uma lista de razões pró e contra a mudança, dando a cada razão um numero. A soma de pontos foi de 110 pró Inglaterra e 301 pró Nova Zelândia -  e ficou na Inglaterra.

Seu caráter tinha todos os defeitos de suas virtudes. Sacrificou ao resoluto realismo e ao senso pratico, perdendo a poesia e a arte da vida. O único vislumbre poético em seus vinte volumes foi devido a um impressor que o fez falar da “diária versificação das predições cientificas”. Sua grande tenacidade muitas vezes degenerou em obstinação; era capaz de varrer o mundo inteiro em coleta de provas para suas hipóteses, mas não conseguia colocar-se no ponto de vista dos outros; tinha o egotismo que gera o não-conformista e não sabia conduzir sua grandeza sem orgulho. Como pioneiro sofria as limitações de todos os pioneiros; estreiteza dogmática, aliada a corajosa candura e intensa originalidade; resistia severamente a lisonja, rejeitava honras oficiais e durante quarenta anos prosseguiu o seu penoso trabalho em modesta reclusão e má saúde. Filho e neto de professores, compunha seus livros de palmatória na mão e sempre em tom didático. “I am never puzzled”. Seu solitário viver de solteiro negou-lhe a tepidez humana, embora ele fosse indignamente humano. Teve um contato amoroso com “o grande inglês” George Eliot, mas essa mulher possuía muito intelecto para agradar a Spencer. A seu estilo faltaram humor e nuanças da sutileza. Quando perdia uma partida de bilhar, acusava o companheiro de devotar muito tempo aquele exercício com a intenção de se tornar perito. Na Autobiografia fez a critica dos seus primeiros livros, mostrando como deviam ser escritos.

Aparentemente a magnitude de sua tarefa o compeliu a olhar para a vida com mais seriedade do que a vida merece. “Fui a fête de St. Cloud, domingo”, esteve de Paris, “e muito me diverti com a juvenilidade dos adultos. Os franceses nunca cessam totalmente de ser rapazes; vi homens grisalhos correndo em carroceis como os das nossas feiras”. Preocupava-se tanto em descrever a vida que não teve tempo de vivê-la. Depois de uma visita a catarata do Niagara, lançou em seu diário: “Era o que eu esperava”. Descrevia os incidentes mais comuns com magnífica pedantaria – como quando nos fala da única vez que jurou [*Tindall disse dele que seria um muito melhor companheiro se praguejasse de vez em quando]. Não sofreu crises, não foi afetado pelo romantismo [se é que suas memórias dizem tudo]; teve algumas intimidades mas sobre elas fala quase que matematicamente; na amizade não mostrou paixão. Um amigo disse-lhe não poder ditar quando a estenografia era moça e Spencer confessou que a ele isso lhe era indiferente. Seu secretario conta: “Os lábios finos diziam de uma total ausência de sensualidade e os olhos claros traiam a falta de emoção profunda” [*Royce]. Daí a monótona igualdade do seu estilo; Spencer nunca se exalta, nem usa pontos de admiração; em um século romântico, permanece um modelo de dignidade e reserva.

Seu cérebro era excepcionalmente lógico; jogava com os a prioris e os a posterioris com a precisão de um enxadrista. Tornou-se o mais claro expositor de doutrinas que a história conhece; sobre os mais complexos problemas escreveu em termos tão lúcidos que por uma geração o mundo inteiro passou a interessar-se pela filosofia. “È de notar, diz ele, que possuo uma notável faculdade expositiva – e estabeleço meus dados, raciocínios e conclusões com clareza e coerência invulgares”. Spencer gostava das largas generalizações e fazias as suas obras ainda mais interessantes pelas hipóteses do que pelas provas. Huxley nota que a sua idéia da tragédia era a de “uma teoria trucidada por um fato”; e como existissem muitas teorias em sua cabeça, diariamente tinha Spencer de avir-se com tragédias. Impressionado com o andar vacilante de Buckle, disse Huxley a Spencer: “Ah, ele tem a cabeça muito cheia”. Ao que o filosofo acrescentou: “Buckle encheu-a de mais fatos do que pode ela organizar”. Com Spencer dava-se o contrário; organizava mais do que enceleirava. Era todo síntese e coordenação, e depreciava  Carlyle por não ser assim. A paixão da ordem tornou-se afinal escravizadora – Spencer passou a não resistir a uma generalização brilhante. Mas o mundo estava a clamar por um cérebro assim; um cérebro que pudesse transformar a congerie dos fatos em uma ordem humana de clareza cegante – e o serviço que ele prestou a sua geração sobrepuja de longe todas as suas falhas. Se aqui o pintamos com franqueza é porque amamos melhor um grande homem quando lhe conhecemos todos os fracos – e dele desconfiamos quando nos é apresentado como o suprassumo da perfeição.

“Até esta data”, escreveu Spencer aos quarenta anos, “minha vida pode ser considerada como miscelanica. Raramente a carreira de um filosofo mostrou tanta vacilação. “Por esse tempo [vinte e três anos] minha atenção se voltou para o fabrico de relógios”. Mas gradualmente encontrou o seu terreno e nele laborou com a tenacidade do homem do campo. Em 1842 escreveu para o Non-conformist [note-se o veiculo escolhido] algumas cartas sobre “A Verdadeira Esfera do Governo”, que encerravam os germes da sua filosofia do laizess faire dos últimos tempos. Seis anos mais tarde abandonou a engenharia para editar The Economist. Aos trinta, quando atacou os ensaios sobre a moral de Daymond e seu pai o desafiou a fazer uma obra assim, escreveu a Social Statics, que teve pequena venda mas penetrou nas revistas.Em 1852 seu ensaio “A Teoria da População” [um dos muitos exemplos da influencia de Malthus no pensamento do século dezenove]sugeriu que a luta pela vida conduz a sobrevivência dos mais aptos – e cunhou para sempre essa frase histórica. No mesmo ano seu ensaio sobre o desenvolvimento das hipóteses bateu a surrada objeção de que a origem de novas espécies por modificações progressivas das velhas era fenômeno jamais visto – mostrando que esse argumento contrabatia fortemente, isso sim, o conceito da “criação especial” de novas espécies por Deus; e demonstrou que o desenvolvimento de novas espécies não era mais maravilhoso ou incrível que o desenvolvimento do homem ou da planta a partir do óvulo ou da semente. Em 1855 seu segundo livro, Princípios de Psicologia, empreendeu traçar a evolução do espírito. Depois, em 1857, veio o ensaio sobre o progresso, suas leis e causas, onde retomou a idéia de Von Baer, do crescimento de todas as formas vivas pela passagem de começos homogêneos para desenvolvimentos heterogêneos, erigindo-a como um principio geral de historia e de progresso. Spencer estava, em suma, abeberado do espírito de sua época e pois apto para tornar-se o filosofo da evolução universal.

Quando em 1858 revia seus ensaios para a publicação definitiva, viu-se impressionado pela unidade e seqüência das idéias que havia expresso; e como um raio de sol, que entra pela janela, veio-lhe o pensamento de que a teoria da evolução podia ser possível explicar por meio dela não só a vida das espécies e gêneros como os planetas e estratos, e a historia política e social, e a moral e a estética. Spencer teve a visão de uma série de obras onde mostrasse a evolução da matéria e do espírito, da nebulosa ao homem, do selvagem a Shakespeare. Mas quase perdeu o animo quando se lembrou que já estava próximo dos quarenta anos. Como poderia um homem dessa idade, e quase invalido, percorrer todas as esferas do conhecimento antes de morrer? Três anos antes havia tido uma seria depressão nervosa e durante dezoito meses errava desesperançado de um ponto para outro. A consciência das suas possibilidades agravava ainda mais o seu mal-estar. Tinha a certeza de nunca restabelecer completamente a saúde e de cada vez não suportava mais de uma hora de trabalho mental. Nunca houve um homem menos adequado à tarefa que escolheu nem que a ela se entregasse tão tarde.

Spencer era pobre. Nunca dera muita atenção ao ganhar dinheiro. “Não pretendo ganhar dinheiro: acho que não vale a pena” [*J.A.Thonson; Herbert Spencer].Resignou a direção do The Economist ao receber o legado de 2.400 dólares de um tio; mas sua vadiagem consumiu o legado. Ocorreu-lhe então que poderia arranjar subscritores para as obras planeadas. Preparou o esquema que submeteu a Huxley, Lewes e outros amigos, os quais lhe arranjaram um imponente começo de lista ótimo para ornamentar os prospectos – Kings-Ley, Lyell, Hooker, Tyndall, Buckle, Froude, Bain, Herschel e outros. Publicado em 1860, esse prospecto rendeu 440 subscrições na Europa e 200 na América; o total produzia a modesta soma de 1.500 dólares por ano. Spencer deu-se por satisfeito e atirou-se ao trabalho.

Mas depois da publicação dos “Primeiros Princípios”, em 1862, muitos subscritores cancelaram seu nomes; a primeira parte da obra, que tentava reconciliar a ciência e a religião, ofendeu os dois lados. A tarefa de anjo da paz é espinhosa. Os Primeiros Princípios e a Origem das Espécies tornaram-se o centro da grande Batalha dos Livros, na qual Huxley serviu de generalíssimo das forças do darwinismo e do agnosticismo. Por uns tempos os evolucionistas foram conservados em severo repudio pelas pessoas respeitáveis; eram denunciados como monstros da imoralidade, sendo de bom tom insultá-los em publico. Os subscritores de Spencer falhavam de varias maneiras, obrigando-o a prosseguir como podia, pagando do seu bolso os deficits das edições. Por fim a coragem e os fundos exauriram-se, e ele endereçou uma nota aos subscritores declarando que a obra não podia ir avante.

Ocorreu então o imprevisto. O Mario rival de Spencer, o homem que encabeçava a filosofia inglesa antes do aparecimento dos Primeiros Princípios e se via agora obumbrado pelo filosofo da evolução, escreveu-lhe a 4 de fevereiro de 1866 o seguinte:

*caro Senhor:
Chegando cá a semana passada encontrei o fascículo de dezembro da sua Biologia, e é inútil frisar o quanto lamentei os dizeres da nota inclusa...Proponho-me garantir os interesses do editor contra qualquer perda, para que a obra prossiga...Peço que não considere esta proposta um favor pessoal, embora, se o fosse, eu ainda me atreveria a esperar que me fosse permitido fazê-la. Não se trata disto, porém, e sim de uma simples proposta de cooperação para um importante propósito de bem geral que vem consumindo o seu trabalho e a sua saúde.
Sou, meu caro senhor, com alta estima
J.S.Mill.

Spencer recusou cortesmente; Mill, porém, correu amigos e os fez subscreverem 250 exemplares cada um. Spencer de novo objetou e não foi demovido. Nisto chega da América uma carta do Prof. Youmans, dizendo que os admiradores transatlânticos de Spencer haviam adquirido em nome do filosofo sete mil dólares de títulos públicos cujos interesses lhe caberiam. Spencer, então, cedeu; o espírito da doação renovou a sua inspiração e o fez retomar o trabalho – e durante quarenta anos deu-se-lhe totalmente, até ver publicados todos os volumes da Filosofia Sintética. Este triunfo do espírito sobre a doença, e mais mil obstáculo, é um dos raios do sol do livro da humanidade.    

11 de mai. de 2011

Herbert Spencer_Comte e Darwin

A Filosofia kantiana que se dava como base de toda a metafísica futura, era maliciosamente um impulso ao modo tradicional de especulação; ao invés, entretanto, resultou em um golpe terrível em todas as metafísicas em geral. Porque a metafísica havia significado, através da história do pensamento, uma tentativa para descobrir a natureza intima da realidade, e os homens ficaram sabendo pela palavra do mais respeitável mestre que a realidade não poderia nunca ser apreendida pela experiência; que era um ‘noumenon’, concebível, mas não cognoscível; e que ainda a inteligência humana mais sutil nunca passaria além dos fenômenos e, pois, jamais levantaria o véu de Maia. As extravagâncias metafísicas de Fichte, Hegel e Schelling com suas varias interpretações do velho enigma, seus Egos e Idéias e Vontade haviam-se reduzido umas as outras a zero; e quando o século entrou a amadurecer já estava geralmente aceito que o véu não seria levantado. Após uma geração intoxicada do Absoluto,o pensamento europeu reagiu e se pôs contra a metafísica, de qualquer espécie que fosse.

Os franceses se haviam especializado no ceticismo; natural, pois, que da França brotasse o fundador do movimento ‘positivista’. Augusto Comte – ou Isidoro Augusto Marie François Xavier Comte – nasceu em Montplellier em 1798. Teve como ídolo na mocidade a Benjamim Franklin, ao qual chamava o moderno Sócrates. “Aos vinte e cinco anos Franklin deliberava tornar-se um puro sábio [wise] e realizou a tarefa. Embora eu ainda não tenha vinte anos, vou realizar a mesma coisa”, disse Comte, e começou bem, fazendo-se secretário do grande utopista Saint-Simon. Saint-Simon lhe transmitiu o entusiasmo reformador de Turgot e Condorcet e a idéia de que os fenômenos sociais, assim como os físicos, podem ser reduzidos a leis, e ainda que a ciência e toda a filosofia deve ter por alvo o melhoramento moral e político da espécie humana. Da mesma forma, porém, que muitos reformadores do mundo. Comte encontrou dificuldade em dirigir sua casa; em 1827, depois de dois anos de infelicidade no casamento, foi vitima de uma depressão mental e tentou afogar-se no Sena. Ao seu salvador, portanto, deve o mundo os cinco volumes da Filosofia Positiva, aparecidos de 1830 a 1842, e os quatro da Política Positiva vindos a luz entre 51 3 54;

Foi uma empresa que no escopo e na paciência, só teve similar na “Filosofia Sintética” de Spencer. Comte classificou as ciências de acordo com a decrescente simplicidade e generalidade do respectivo objeto: matemática, astronomia, física, química, biologia e sociologia, cada qual repousando nos resultados das antecedentes; a sociologia, por isso, forma o ápice da pirâmide, de modo que todas as ciências existem para fornecer material para as conclusões da sociologia ou ciência da sociedade. Em seu sentido de conhecimento exato, a ciência subia de uma matéria a outra na ordem estabelecida, sendo natural que os complexos fenômenos da vida social fossem os últimos a se submeterem a disciplina cientifica. Em cada campo do pensamento o historiador das idéias pode observar a lei dos Três Estados: a principio a matéria é concebida teologicamente, com todos os problemas explicados pelo querer de alguma divindade -  como quando as estrelas eram deuses ou carros dos deuses; depois vem o estado metafísico, em que tudo é explicado por meio de abstração metafísica – como quando as estrelas são imaginadas moverem-se em círculos porque o circulo é a mais perfeita figura geométrica; finalmente surge o estagio positivo, em que a ciência se baseia em observação, hipótese e experimentação, sendo os fenômenos explicados de acordo com a regularidade de suas causas e efeitos naturais. A “Vontade de Deus” cede lugar a entidades como a “idéia” de Platão ou a “Idéia Absoluta” de Hegel, e estas por seu turno cedem o lugar as leis da ciência. A Metafísica é um estagio de desenvolvimento já paralisado: o tempo chegou, diz Comte, de abandonar essas puerilidades. Filosofia não é algo diferente de ciência, e sim a coordenação de todas as ciências, com vista no melhoramento da vida humana.

Há um certo dogmatismo intelectual neste sistema que talvez decorresse das desilusões e do isolamento do filosofo. Quando em 1845 Mme. Clotilde de Vaux [cujo marido estava encarcerado] empolgou o coração de Augusto Comte, a nova afeição passou a colorir e aquecer-lhe os pensamentos, determinado a reação que o levou a colocar o sentimento acima da inteligência como força reformadora, e a concluir que o mundo só poderia ser redimido por uma nova religião que fortificasse o fraco altruísmo da natureza humana por meio da exaltação da Humanidade como objeto de adoração. Gastou Comte seus últimos anos a arquitetar esta Religião da Humanidade, estabelecendo o sacerdócio, os sacramentos, as orações e a disciplina; e propôs um novo calendário, no qual o nome das deidades pagãs e dos santos medievais fossem substituídos pelos heróis do progresso humano. Comte oferecia ao mundo o mesmo rito católico, mas descristianizado.

O movimento positivista harmonizou-se com a corrente mental inglesa, que defluia da vida da industria e do comércio e olhava com reverencia para os fatos. A tradição baconiana voltava o pensamento inglês na direção das coisas, o espírito na direção da matéria; o materialismo de Hobbes, o sensacionalismo de Locke, o ceticismo de Hume, o utilitarismo de Bentham eram variações sobre o tema da vida ativa e pratica. Só Berkeley, um irlandês, discordava nesta harmonia domestica. Hegel sorria do habito inglês de honrar o equipamento físico e químico com nome de “instrumentos filosóficos”; mas essa expressão ocorre naturalmente aos que concordam com Spencer e Comte no definir a filosofia como a generalização dos resultados de  todas as ciências. Assim foi que o movimento positivista encontrou mais aderentes na Inglaterra do que no seu país de origem; aderentes não tão fervorosos como Littré, mas dotados daquela tenacidade inglesa que conservou John Stuart Mill e Frederick Harrison fieis por toda a vida a filosofia de Comte, embora, advertidos pela prudência britânica, arredados da parte religiosa do sistema.

Entrementes a Revolução Industrial, nascida de um pouco de ciência, entrava a estimular todas as ciências. Newton e Herschel haviam devassado a lei das estrelas; Boyle e Davy, aberto os tesouros da química; Rumford e Joule, demonstrado a transformabilidade e equivalência da força e a conservação da energia. As ciências haviam chegado a tal estagio de complexidade que foi com alivio que o mundo tonto recebeu a proposta de uma síntese. Mas acima de todas as influencias intelectuais que na juventude de Herbert Spencer agitaram a Inglaterra estava o crescimento da biologia e a doutrina da evolução. A ciência fora exemplarmente internacional no desenvolvimento desta doutrina. Kant falara da possibilidade dos macacos virarem homens; Goethe escrevera da “metamorfose das plantas”; Erasmus, Darwin e Lamarck propuseram a teoria da evolução das espécies, das formas simples as complexas, por meio da hereditariedade dos efeitos do uso e do não uso; e em 1830 St. Hilaire escandalizara a Europa e deleitara Goethe com o seu quase triunfo sobre Cuvier no famoso debate sobre a evolução, o qual lembrava um outro caso do Ernani – como revolta contra a idéia clássica da imutabilidade das coisas.

A evolução estava no ar. Spencer  exprimiu a idéia antes de Darwin em um ensaio sobre – “The Development Hypothesis” [1858], e nos seus Princípios de Psicologia [1855]. Em 1858 Darwin e Wallace leram as suas famosas comunicações na Linnaean Society; em 1859 o velho mundo veio abaixo, como os bispos o supuseram, com a publicação da Origem das Espécies. Não era mais uma vaga noção da evolução, as mais altas espécies evolvendo das mais baixas, e sim uma minuciosa e ricamente documentada teoria do processo da evolução “por meio da seleção natural, ou preservação das espécies mais favorecidas na luta pela existência”. Numa década o mundo inteiro estava a falar em evolução. O que elevou Spencer as cumeadas desta onda de pensamento foi a clarividência de espírito que lhe sugeriu a explicação da idéia a todos os campos de estudo e um preparo cientifico que lhe permitiu trazer quase todos os conhecimentos humanos para suporte da teoria. Como a matemática havia dominado a filosofia no século dezessete, dando ao mundo Descartes, Hobbes, Spinoza, Leinitz e Pascal; e como a psicologia impregnara a filosofia de Berkeley, Hume, Condillac e Kant, e mais tarde a de Schelling e Schopenhauer e Spencer e Nietzsche e Bérgson, a biologia se tornou o fundamento do pensamento filosófico. As idéias de uma época são produtos parciais de homens separados, mais ou menos obscuros; mas ficam ligados ao nome do que melhor as coordena e esclarece; assim o Novo Mundo tomou o nome de Américo Vespucio por ter ele desenhado o seu mapa. Herbert Spencer foi o Vespucio da época de Darwin – e também alguma coisa do seu Colombo.  

10 de mai. de 2011

Schopenhauer_Considerações Finais

A resposta natural a semelhante filosofia é um diagnostico medico do seu autor e da sua época.

Temos aqui um fenômeno aparentado com o que, logo depois de Alexandre e César, derramou sobre a Grécia e Roma uma vaga de fé e atitudes orientais. A característica do Oriente é ver a Vontade externa da natureza como muito mais poderosa que a do homem – e daí incubar doutrinas de resignação e desespero. Como a decadência da Grécia trouxe para o rosto de Helas a palidez do Estoicismo e do Epicurismo, assim do caos das guerras napoleônicas veio para a alma da Europa o lamentoso desanimo de que Schopenhauer foi a voz. A Europa sofreu de uma terrível cefalalgia em 1815 [*Considere-se a apatia e o desanimo da Europa de 1924 e a popularidade de livros como a Queda do Oriente, de Spengler].

A diagnose pessoal pode partir da admissão por Schopenhauer de que a felicidade do homem depende do que ele é antes do que das circunstancias. O pessimismo é um produto do pessimista. Dados uma constituição doentia e um cérebro neurótico, uma vida vazia e tediosa, a fisiologia das idéias de Schopenhauer emerge logicamente. Só o homem que dispõe de lazer é pessimista; a vida ativa otimiza o corpo e o espírito. Schopenhauer louva a serenidade que decorre dos ideais modestos de uma vida firme mas não fala disso por experiência pessoal...Difficilis in otio quies, muito bem; ele possuía meios para o lazer continuo e descobriu que o lazer continuo é mais intolerável que o trabalho ininterrupto. Talvez a tendência dos filósofos para a melancolia decorra do anti-natural da vida sedentária; freqüentemente uma diatribe contra a vida corresponde a mero sintoma de prisão de ventre.

O Nirvana é o ideal do homem sedentário, de um Childe Harold ou um René que desejou muito, jogou tudo em uma só paixão e, tendo perdido, passa o resto da vida em um tédio petulante. Se o intelecto se ergue como servo da vontade, esse particular produto do intelecto que conhecemos com o nome de filosofia de Schopenhauer não passa de uma escusa da vontade indolente ou mórbida. Suas primeiras experiências da mulher e dos homens desenvolveram nele uma desconfiança anormal e um estado de mórbida sensibilidade, como sucedeu a Nietzsche, Flaubert e Stendhal. Schopenhauer tornou-se solitário e cínico. Escreveu: “Um amigo necessitado não é um amigo e sim um tomador de dinheiro”; e “Nada diga a um amigo que não possa confiar a um inimigo”. Aconselhava a calma e a monótona vida do ermitão; fugia da sociedade e não tinha nenhum senso dos valores e das alegrias da associação humana. Mas a felicidade perece quando não compartilhada.

Há sem duvida no pessimismo um largo elemento de egotismo; o mundo não é bastante bom para nós e por isso torcemos o nosso nariz filosófico. Mas isto é esquecer a lição de Spinoza, de que nossos termos de censura ou aprovação moral não passam de simples juízos do homem, irrelevantes, pois, quando aplicados aos cosmos como um todo. Talvez que o nosso desgosto da vida seja um disfarce para esconder o desgosto para com nós mesmos; estragamos nossa vida e lançamos a culpa ao ‘ambiente’ ou ao ‘mundo’, que não possuem línguas para se defender. O homem maduro aceita as limitações naturais da vida; não espera que a providencia abra exceções em seu favor; não pede dados viciados para jogar no jogo da vida. Sabe, como Carlyle, que é desassizado vituperar o sol porque não nos acende o cigarro. E, talvez, se formos hábeis, até isso nos fará o sol; e este vasto cosmos neutro se tornará uma agradável moradia, se o ajudarmos com um pouco do nosso sol. Na verdade o mundo não é a favor nem contra nós; mas sim matéria prima em nossas mãos para com ela fazermos céu ou inferno.

Uma das causas do pessimismo de Schopenhauer e seus contemporâneos jaz em suas expectativas e atitudes românticas. A mocidade espera excessivamente do mundo; o pessimismo é a manhã seguinte do otimismo, como 1815 foi o pagante de 1789. A exaltação romântica e a libertação do sentimento, do instinto e da vontade, bem como o romântico desprezo pelo intelecto, pelas restrições, pela ordem, trouxeram suas naturais sanções; porque o ‘mundo’ como dizia Horace Walpole, “é uma comedia para os que pensam e uma tragédia para os que sentem”. “Talvez nenhum movimento tenha sido tão fecundo em melancolia como o romantismo emocional...Quando o romântico descobre que o seu ideal de felicidade conduz a infelicidade, ele não acusa o seu ideal. Simplesmente conclui que o mundo é indigno de um ser tão finamente organizado como ele, romântico”. Como poderá um caprichoso universo satisfazer a uma alma caprichosa?

O espetáculo de Napoleão a caminhar para o trono, a denuncia de Rousseau e a critica de Kant ao intelecto, juntamente com o seu gênio apaixonado e suas experiências de vida, sugeriram a Schopenhauer o primado da vontade. Talvez Waterloo e Santa Helena hajam também contribuído para desenvolver um pessimismo oriundo do doloroso contato com a vida. Estava lá a individualidade mais dinâmica da história, imperioso comandante de continentes – e sua condenação era tão certa como a da mosca que nasce e morre no mesmo dia. Jamais ocorreu a Schopenhauer que era melhor ter lutado e perdido do que nunca haver lutado; ele não sentia, como o másculo Hegel, a gloria e a desejabilidade da luta; ansiava por paz -  e viveu no meio da guerra. Por toda parte via lutas e por trás das lutas não percebia o socorro amigo dos vizinhos; a alegria folgazã das crianças e dos moços, as danças das raparigas, o sacrifício voluntário dos pais e dos amantes, a paciente generosidade do solo e o renascer da primavera.

E que importa que um desejo satisfeito traga o surto de novo desejo? A felicidade, diz velha lição, reside antes no ato de realizar do que na realização em si. O homem sadio só pede como felicidade o ensejo para o exercício do seu esforço, e se por essa liberdade de agir tem de pagar a pena de dor, paga-a alegremente; não é grande o preço. O aeroplano e a ave necessitam da resistência do ar para erguerem vôo; nós necessitamos de obstáculos que estimulem nosso desenvolvimento e acrescentem nossa força. A vida sem tragédia seria indigna de um homem [*Schopenhauer: Não ter trabalho regular, que coisa miserável! Esforço, lutas contra as dificuldades – isto é tão natural para o homem como moer o é para a mó do moinho. Ter todas as suas necessidades satisfeitas torna-se intolerável – o sentimento da estagnação proveniente dos prazeres que duram muito. Para superar dificuldades é conhecer o deleito Maximo da existência – “Conselhos e Máximas”].

Será verdade que “o aumento do conhecimento cresce a dor” e que o organismo mais altamente apurado seja o que mais sofre? Sim; mas também é verdade que o crescer em conhecimento cresce a alegria tanto quanto a dor, e que os mais suaves deleites são reservados para as almas mais desenvolvidas. Voltaire dava preferência a sabedoria do brâmane “infeliz” a bem-aventurada ignorância da mulher do campo; queremos conhecer a vida a fundo ainda que ao preço de muita dor; queremos aventurar pelos seus mais recônditos recessos ainda que ao preço da desilusão [*Anatole France – ultima encarnação de Voltaire – dedicou uma das suas obras primas – ‘A Tragédia Humana’ – a tarefa de mostrar que, embora a alegria da compreensão seja uma alegria triste, os que uma vez a provam não a trocam nunca pelas frívolas alegrias e ocas esperanças do vulgo – Jardim de Epicuro]. Virgilio, que havia experimentado todos os prazeres e conhecera todas as excelências do favor imperial, mostrou-se no Tim “cansado de tudo, exceto das alegrias da compreensão”. Quando os sentidos cessam de nos dar prazer, há o acesso a camaradagem com artistas, poetas e filósofos, que só o espírito maduro pode compreender. A sabedoria é um doce-amargo deleite.

É o prazer negativo? Unicamente uma alma ferida e fora de contato com o mundo poderia enunciar uma semelhante blasfêmia. Que é o prazer senão a operação harmoniosa dos nossos instintos?

Não há duvida de que a morte é terrível. Muitos dos seus terrores, porém, desaparecem para os que vivem a vida normal; o homem tem que viver bem para morrer bem. E poderia a não-morte deleitar-nos? Quem ainda invejou a sina de Ashaverus, que recebeu a imortalidade como o pior castigo que lhe poderia cair sobre a cabeça? E por que é má a morte senão porque o viver é bom? Não precisamos dizer como Napoleão que todos os que temem a morte são no fundo da alma ateístas; mas podemos com segurança dizer que um homem que viveu sessenta anos e mais dez sobreviveu ao seu pessimismo. Nenhum homem, diz Goethe, é pessimista depois dos trinta anos. E dificilmente antes dos vinte; o pessimismo é luxo dos orgulhosos e da mocidade cheia de si; da mocidade que sai do seio quente da família comunistica para a atmosfera individualistica da competição pessoal – e sonha com as quenturas que deixou; da mocidade que se atira contra moinhos de vento e deleita-se em arquitetar utopias e idéias. Antes dos vinte anos há a alegria do corpo e depois dos trinta a alegria do espírito; antes dos vinte, o prazer da proteção e da segurança; e depois dos trinta a alegria do lar.

Como pode um homem escapar ao pessimismo, se viveu toda a vida numa casa de pensão? E se abandonou seu único filho a ilegitimidade anônima? [*Finot, Ciência de Fidelidade]. No fundo da infelicidade de Schopenhauer estava a repulsa da vida normal – sua repulsa da mulher, do casamento, dos filhos. Ele via na procriação o maior dos males – e é onde o homem normal encontra as maiores satisfações. Considerava o furtivo do amor como vergonha de continuar a perpetuação da espécie – e isto não passa de absurda pedanteria. Enxergava no amor unicamente o sacrifício do individuo a raça e ignorava os deleites com que o instinto paga tal sacrifício – tamanhos, que vem inspirando a maior parte dos poetas do mundo. Considerava a mulher unicamente como pecadora astuta porque não a conheceu de outro tipo. Declarava que o homem que se devota a sustentar uma mulher é um néscio; mas aparentemente esses homens não são mais infelizes do que o nosso apostolo da infelicidade solteira; e [como diz Balzac] custa tanto suportar um vicio como uma família. Schopenhauer desdenha da beleza da mulher – como se existisse qualquer forma de beleza que não fosse a cor e fragrância da vida. Que ódio a mulher um infortúnio gerou nessa alma!

Existem outras dificuldades mais técnicas, e menos vitais nesta notável e estimulante filosofia. Como pode o suicídio ocorrer em um estado onde a única força real é a da vontade do viver? Como pode o intelecto, nascido e criado como servo da vontade, alcançar independência e objetividade? Jaz o gênio no conhecimento divorciado da vontade, ou contem ele em si um imenso poder de vontade com larga dose de ambição pessoal ou orgulho?  Estará a loucura ligada ao gênio em geral, ou unicamente ao tipo romântico do gênio [Byron, Shelley, Pöe, Heine, Swinburne, Strindberg, Dostoievski, etc]; ficando os de tipo “clássico” e, pois, os mais profundos isentos dela [Sócrates, Platão, Spinoza, Bacon, Neuton, Voltaire, Goethe, Darwin, Whitman, etc]? A função própria do intelecto e da filosofia não será em vez da negação da vontade, a coordenação dos desejos em uma unidade de vontade harmoniosa? Que é a própria “vontade” em si senão uma abstração mística, tão vaga como “força”?

Há na filosofia de Schopenhauer, entretanto, uma nota de brutal honestidade que deixa os credos otimistas transformados em soporosas hipocrisias. Muito bom dizer, como Spinoza, que o bem e o mal são termos subjetivos, preconceitos humanos; mas somos obrigados a julgar este mundo, não de um ponto de vista “imparcial”, mas do ponto de vista real dos sofrimentos e das necessidades humanas.  Foi ótimo que Schopenhauer forçasse a filosofia a encarar a dura realidade do mal, e abrisse os olhos do homem a necessidade de aliviá-lo. Tornou-se mais difícil, desde esse dia, permanecerem os filósofos na atmosfera do irreal, a recrearem-se em metafísicas; os pensadores passaram a compreender que pensamentos sem ação é doença.

Schopenhauer abriu os olhos dos psicologistas para a sutil profundidade e força onipresente do instinto. O intelectualismo – a concepção do homem como, acima de tudo, um animal pensante, conscientemente adaptando meios para fins racionalmente escolhidos – adoeceu com Rousseau, foi para a cama com Kant e morreu nas mãos de Schopenhauer. Depois de dois séculos de analise introspectiva a filosofia encontrou atrás do pensamento o desejo; e atrás do intelecto, o instinto; justamente como depois de um século de materialismo, a física iria encontrar por detrás da matéria a energia. Devemos a Schopenhauer a revelação do nosso coração secreto a nós mesmos, mostrando que nossos desejos são os axiomas das nossas filosofias e abrindo caminho para a compreensão do pensamento como um flexível instrumento de ação e desejo, não mais como mero calculo abstrato de acontecimentos impessoais.

Finalmente, a despeito dos seus exageros, Schopenhauer ensinou-nos a necessidade dos gênios e o valor da arte. Viu que o bem supremo é a beleza e que a alegria suprema reside na criação ou no cultivo do belo. Schopenhauer juntou a Carlyle e a Goethe no protesto contra a tentativa de Hegel, Max e Buckle para eliminar o gênio como fator fundamental da historia humana; em uma idade em que todos os grandes pareciam extintos, ele pregou uma vez mais o nobre culto dos heróis. E com todos os seus defeitos entrou para a galeria dos gênios. 
M.L.

Schopenhauer_A Sabedoria da Morte

Algo mais ainda é necessário. Com o Nirvana o individuo alcança a paz da ausência de vontade e encontra a salvação; mas, e além do individuo? A vida sorri da morte de um individuo; sobrevive  na sua prole ou na dos outros;  e ainda que este riacho de vida seque, outros se vão tornando cada vez mais largos no decorrer das gerações. Como pode o Homem ser salvo? Há para as raças um Nirvana, como para o individuo?

Obviamente, a conquista final e radical da vontade se faria pela supressão da fonte da vida – a vontade de reproduzir: “A satisfação do impulso reprodutor é profunda e intrisecamente repreensível por ser a mais forte afirmação da vida”. Que crimes  cometeram as crianças para serem condenadas a nascer?

*Se contemplamos o torvelinho da vida vemos todo mundo ocupado com as suas misérias, lutando as extremas para satisfazer suas infinitas necessidades e varrer com suas inumeráveis aflições, e apesar disso não esperando outra coisa senão preservar o mais possível esse breve lapso de vida. No meio desse tumultuo brilham os olhares secretos, medrosos e furtivos dos amantes. Porque os amorosos são traidores que procuram perpetuar a inferneira da vida, que sem isso breve chegaria ao fim...dai o motivo de ter-se tornado vergonhoso o processo da geração.

É a mulher culpada aqui; porque são seus encantos que arrastam de novo o homem à reprodução. A mocidade não possui bastante inteligência para alcançar o breve dessas seduções; quando a inteligência acorda, já é tarde.

*Com as moças a Natureza parece ter em vista o que na linguagem do teatro se chama efeito; por alguns anos a Natureza as dota com os primores da beleza e do ‘charme’ as expensas do resto de suas vidas, e durante esse período elas capturam a imaginação dos homens arrastando-os ao encargo de as sustentar pela vida inteira – uma passo que jamais seria dado se unicamente a razão dirigisse o pensamento dos homens...Aqui, como nom ais, a Natureza procede com a habitual economia; porque, assim como a formiga fêmea depois de fecundada perde as asas já supérfluas, assim também, depois de ter dado ao mundo um ou dois filhos, a mulher em regre perde toda a beleza – e provavelmente pelas mesmas razões da formiga: asas e beleza iriam prejudicar a criação dos filhos.

Os moços devem refletir que se o “objeto que agora lhes inspira sonetos houvesse nascido dezoito anos antes, eles não lhe dariam um olhar”. E além disso o corpo do homem tem muito mais beleza que o da mulher.

*Unicamente um homem com a cabeça perturbada pelo impulso sexual pode dar o nem de ‘belo sexo’ a essa raça de pequena estatura, ombros estreitos, ancas largas e pernas curtas; a beleza de tal sexo decorre desse impulso. Em vez de considerá-las belas, o justo seria vê-las como inesteticas. Nem para a musica, nem para a poesia, nem para as belas artes possuem nenhuma sensibilidade real; por mero fingimento e para melhor agradar aos homens é que pretendem interessar-se por isso...São incapazes de tomar interesse objetivo pelo que quer que seja...Os mais notáveis intelectos do sexo feminino jamais puderam produzir uma só obra realmente original; nem dar ao mundo uma só obra de valor permanente em qualquer esfera [*Ensaio Sobre a Mulher].

Esta veneração da mulher é um produto do cristianismo e do sentimentalismo alemão; é por sua vez a causa do movimento romântico que exalta o sentimento, o instinto, e põe a vontade acima do intelecto. Os asiáticos sabem mais, e francamente reconhecem a inferioridade da mulher. “As leis que dão a mulher igualdade de direitos deviam dar-lhe também igualdade de intelecto”. A Asia também mostra maior honestidade do que nós nas suas instituições do casamento; aceita como normal e legal a poligamia que, embora largamente pratica entre nós, vive a coberto pela folha de parra. “Onde existem verdadeiros monógamos?” E que absurdo conceder direitos de propriedade a mulher! “Todas as mulheres são, com raras exceções, inclinadas a extravagâncias” porque vivem só no presente e seu dileto esporte consiste em comprar nas lojas. “A mulher julga que a missão do homem é ganhar dinheiro e a delas, gastá-los”; nisso se resume o conceito feminino da divisão do trabalho. “Sou portanto de opinião que a mulher não deve ser permitido dirigir seus negócios, devendo ficar sempre sob a supervisão do macho, seja pai, marido, filho ou estado – como na Índia; e que por conseqüência não lhe deve ser dado o direito de dispor da propriedade que não adquiriu” [*Wallace, pág.80. Eco do desgosto de Schopenhauer ante as extravagâncias de sua mãe]. Foi provavelmente o luxo e a extravagância das mulheres da corte de Luiz Quatorze que trouxeram a corrupção do governo, desfechada na Revolução Francesa.

Quanto menos lidarmos com as mulheres, melhor. Não são nem sequer um ‘mal necessário’ [*Frase de Carlyle]; a vida sem elas é mais segura e suave. Quando o homem perceber a armadilha oculta na beleza da mulher, a absurda comédia da reprodução cessará. O desenvolvimento da inteligência enfraquecerá ou frustrará a vontade de reproduzir, e teremos a extinção da espécie. Nada pode constituir melhor desenlace para a louca tragédia da vontade; por que há de a cortina que desce sobre a derrota e a morte erguer-se de novo para uma nova vida, uma nova luta, uma nova derrota? Por quanto tempo ainda seremos conservados neste muito-barulho-para-nada, nesta aflição continua que nos leva a morte? Quando teremos a coragem de lançar um desafio ao rosto da Vontade – e dizer-lhe que a beleza da vida não passa de mentira pura e que a grande bem-aventurança é a morte?  

5 de mai. de 2011

Schopenhauer_O Mundo Como Mal

Mas o mundo é vontade, tem que ser um mundo de sofrimento, porque vontade quer dizer necessidade e o que é alcançado é sempre menos que o desejado. Para cada desejo satisfeito permanecem dez insatisfeitos. O desejo é infinito; a realização é limitada; - equivale a ‘esmolas dadas a um mendigo que lhe conservam a vida hoje para que sua miséria subsista amanhã...Enquanto nossa consciência estiver cheia da nossa vontade, enquanto nos abandonarmos a malta dos desejos com seu séqüito de esperanças e terrores, enquanto estivermos sujeitos a querer, não teremos felicidade ou paz”. A satisfação nunca satisfaz; nada tão desastroso para um ideal como a realização. “A paixão satisfeita leva com mais freqüência à infelicidade do que a à felicidade. Porque suas exigências tanto se chocam com o bem-estar das criaturas que o destroem”. Cada individuo traz dentro de si uma contradição arrasadora; o desejo realizado desenvolve outro desejo – e assim indefinidamente. “Isto no fundo decorre de ter a vontade de viver de si mesma, porque nada existe fora dela”.

*Em cada individuo a capacidade da dor está determinada de uma vez para sempre; uma medida que não pode ficar vazia, nem ser muito cheia...Se uma grande aflição é de nós afastada, outra, imediatamente a substitui, cujo material já lá estava mas não podia subir a consciência por não haver espaço...Agora que se abriu espaço, veio ocupá-lo.

A vida é mal porque a dor é o estimulo básico da realidade e o prazer, mera cessação da dor. Aristóteles estava certo; o sábio não procura o prazer, mas a libertação dos cuidados e da dor.

*Toda satisfação, ou o que comumente tem nome de felicidade, é na essência negativa...Não temos consciência das bênçãos e vantagens de que no momento gozamos, nem lhes damos valor, como se fossem matéria de curso, porque elas apenas nos satisfazem negativamente evitando a dor. Só depois de perdê-las é que apreendemos o valor que tinham; porque a necessidade, a privação, a mágoa são coisas positivas que se comunicam a nós diretamente...Que levou os Cínicos a repudiar o prazer em todas as suas formas, se não o fato de que a dor está sempre ligada em grau maior ou menor ao prazer?...A mesma verdade se contem no provérbio francês: ‘le mieux est l’ennemi du bien’.

A vida é má porque “quando a necessidade e o sofrimento dão tréguas, o tédio se mostra tão próximo que nos força a procurar diversões” – isto é, mais sofrimento. Ainda que a Utopia socialista fosse alcançada, inúmeros males subsistiriam, porque alguns deles -  como na luta – são indispensáveis a vida; e se todos os males fossem supressos e também a luta, o tédio far-se-ia doloroso. Assim, “a vida oscila como um pendulo entre a dor e o tédio...Depois que o homem transformou todas as penas e tormentos na concepção do inferno nada ficou para o céu senão o tédio”. Quanto maiores os nossos sucessos na vida, maior o nosso tédio. “Assim como a necessidade é o flagelo do povo, o ennui é o flagelo da classe alta. Na classe média o ennui é representado pelos domingos; e a necessidade, pelos outros dias da semana”.

A vida é má porque quanto mais aperfeiçoado o organismo, mais forte o sofrimento. O desenvolvimento da cultura não traz solução.

*Porque a medida que o fenômeno da vontade se faz mais completo o sofrimento se torna mais e mais aparente. Na planta não há sensibilidade e por isso não há dor. Um grau rudimentar de sofrimento aparece nos animais inferiores – infusorios e radiados; no próprio inseto a capacidade de dor é ainda bastante limitada. Começa a aparecer em grau maior com o sistema nervoso dos vertebrados e vai se desenvolvendo em paralelo com a inteligência. Assim, quando a consciência ascende, a capacidade de dor também cresce, e atinge o máximo no homem. E, no homem, mais o individuo conhece ou mais inteligente é, mais sofre – e o dotado de gênio mais que todos.

Aquele que cresce em conhecimento cresce em dor. A própria memória e previsão acrescenta a miséria humana; porque a maior parte dos nossos sofrimentos são antecipados ou retrospectivos; a dor em si é breve. O pensamento da morte nos faz sofrer mais que a própria morte.

Finalmente e acima de tudo, a vida é mal porque a vida é guerra. Em toda a natureza vemos a guerra, a competição, o conflito, e uma alternativa suicida de vitória ou derrota. Cada espécie ‘luta pela matéria, pelo espaço e pelo tempo das outras’.

*A jovem hidra que na hidra ‘mater’ cresce como botão e depois se separa, enquanto está unida ao tronco luta pela presa que se lhe oferece, de modo a roubá-la da irmã que tem ao lado. A formiga-buldogue, da Austrália, ainda nos apresenta ilustração mais frisante; cortada em dois, trava-se entre os pedaços a luta – luta de cabeça e cauda. A cabeça apanha a cauda nos ferrões e a cauda defende-se com o aguilhão; a batalha dura meia hora, até que morram os dois pedaços ou sejam carregados pelas outras formigas. O fato se repete em cada experiência feita...Yunghahn conta ter visto em Java uma planura extensíssima literalmente coberta de esqueletos de tartarugas; vindas do mar para por seus ovos, eram atacadas pelos cães, que as reviravam e as devoravam vivas. Para isso existem as tartarugas...Os tigres por sua vez freqüentemente atacavam os cães...A vontade de viver preá por toda parte e sob diferentes formas é o seu próprio alimento. Vem por fim a raça humana, que pelo fato de dominar todas as espécies considera a natureza propriedade sua. Mas ainda na raça humana se revela o conflito da vontade consigo própria – e temos o ‘homo homini lupus’.

O quadro da vida é de dolorosa contemplação; salva-nos o fato de não o podermos ver inteligentemente.
*Se pudéssemos fazer clara a alguém a visão dos terríveis sofrimentos e misérias a que a vida está exposta, esse alguém seria empolgado pelo horror; e se levássemos um otimista impenitente a percorrer os hospitais, os hospícios, as salas de operação, os cárceres, as câmaras de tortura, as senzalas de escravos, os campos de batalha, os lugares onde se executam os condenados, e se lhe abríssemos ante os olhos todas as escuras espeluncas onde a miséria se esconde da curiosidade vadia e, finalmente, o fizéssemos ver os calabouços dos Ugolinos, ele compreenderia afinal a natureza deste “melhor dos mundos possíveis”. Donde tirou Dante material para o seu inferno senão do mundo real? E fez um verdadeiro inferno com tais elementos...Cada poema épico ou dramático representa uma luta, um esforço, um arranque para a felicidade; nunca uma felicidade completa e duradoura. Os heróis são conduzidos para o objetivo através de mil perigos e dificuldades; e logo que o atingem o pano desce. Isso porque não lhes resta nada mais a fazer e porque a consecução do   fim os desapontou e não lhes melhorou a sorte.

Somos infelizes casados e, não casados, também infelizes. Somos infelizes quando sós e infelizes em sociedade: somos quais porcos amontoados em busca do calor, insatisfeitos com o incomodo da aglomeração e infelizes quando separados. “A vida de cada individuo, se a observamos no conjunto, é quase sempre uma tragédia; mas vista em detalhe tem o caráter de comédia”.
Pense nisto:

*Entrar para uma fabrica em menino e até a velhice permanecer diariamente dez, doze, quatorze horas escutando a mesma operação mecânica equivale a adquirir por preço muito alto a satisfação de respirar. No entanto isso constitui o fado de milhões – e o fado de muitos outros milhões é análogo...E ainda sob a crosta firme do planeta atuam forças poderosas que, se um acidente as puser em liberdade, devem necessariamente destruí-la com todos os seres vivos, como já aconteceu três vezes. O terremoto de Lisboa, o de Haiti e a destruição de Pompéia servem apenas de pequeninas amostras do que é possível suceder.

Em face de tudo isto “o otimismo é uma ironia amarga as desgraças do homem”; e “não podemos dar a Teodiceia de Leibnitz – metódico e largo desdobrar do otimismo – nenhum outro mérito senão o de ter originado o Candide de Voltaire, em que a safada e aleijada justificação de Leibnitz, de que o mal as vezes traz o bem, recebeu uma confirmação por ele não esperada”. Em resumo, “a natureza da vida apresenta-se-nos como calculada para despertar a convicção de que nada merece nosso esforço; de que todas as coisas boas são vaidade, o mundo em todos os seus fins uma bancarrota e a vida em negocio que não paga as despesas”.

Para ser feliz é necessário que a criatura seja ignorante como a juventude. A mocidade considera o querer e a luta como alegrias; nada sabe ainda da insaciabilidade do desejo e da inutilidade da satisfação; desconhece o inevitável da derrota.

*A alegria e a vivacidade da juventude são em parte devidas ao fato de que quando estamos a subir o morro da vida a morte não é visível; só nos aparece do outro lado, no fundo. No termo da vida, cada dia a mais que vivemos nos dá a mesma sensação do criminoso em marcha para o patíbulo...Só sabe como a vida é curta quem a viveu toda...Até os trinta e seis anos podemos ser comparados, no que diz respeito ao modo de usarmos nossa energia vital, aos indivíduos que vivem dos juros do seu dinheiro; o que despendemos hoje temo-lo de novo no dia seguinte. Mas dos trina e seis para cima a posição de um capitalista que entra a gastar seu capital. O medo...desta calamidade faz o amor da posse crescer com a idade...A mocidade é o tempo mais feliz da vida, dizem; creio porém, existi mais verdade no que diz Platão no começo da ‘Republica’ – que o premio deve antes ser dado a velhice porque só então está o homem liberto das paixões animais que até ali o inquietaram...Não esquecer, porém, que quando essas paixões se extinguem o cerne da vida já se foi e só resta a casca; ou, de um outro ponto de vista, a vida se torna uma comédia cujos ‘autores de carne e osso são substituídos por autômatos que lhes vestem os trajes’.

E ao cabo temos a morte. Logo que as experiências começam a coordenar-se em sabedoria, o espírito e o corpo entram a decair. “Tudo oscila por uns momentos e precipita-se para a morte”. E se a morte demora é para brincar conosco a maneira do gato com o rato. “Como o nosso andar é um permanente esforço para não cair, assim a vida do nosso corpo é um continuo esforço para não morrer”. “No magnificente guarda-roupa dos déspotas orientais há sempre um fraco de veneno”. A filosofia do Oriente estabelece a onipresença da morte e dá aos seus filósofos aquele aspecto calmo e aquelas atitudes lentas que decorrem da certeza da brevidade da vida. O medo da morte é o começo da filosofia e a causa final da religião. A média dos homens não pode reconciliar-se com a morte; daí as inumeráveis filosofias e teologias; a crença na imortalidade provêm do medo da morte.

Assim como a teologia é um refugio contra a morte, a loucura é um refugio contra a dor. “A loucura vem como meio de evitar que a memória sofra”; é uma ruptura de salvação na continuidade da consciência; podemos sobreviver a certas experiências ou terrores unicamente esquecendo-os.

*É de muito má vontade que todos nós pensamos de coisas que poderosamente prejudicam nossos interesses, ferem nosso orgulho ou interferem nos nosso desejos; com muita dificuldade nos determinados a submeter essas coisas a um cuidadoso e sério exame do intelecto...Nesta resistência da vontade ao estudo pelo intelecto do que a contraria  está o ponto em que a loucura entra...Se a resistência da vontade contra a apreensão de algum conhecimento chega a ponto de impedir que a operação se faça completa, certos elementos ou circunstancias são suprimidos, porque a vontade não os suporta; e nesse caso, em virtude das necessárias ligações, abre-se espaço para o prazer -  e a loucura aparece. Porque o intelecto abandonou sua natureza para agradar a vontade; o homem passa a imaginar o que não existe. Mas a loucura que assim surge torna-se fonte de insuportáveis sofrimentos; foi o ultimo recurso da natureza acossada -  isto é, da vontade.

O refugio derradeiro é o suicídio e, por estranho que o pareça, aqui a imaginação conquista o instinto. Supõe-se que Diógenes pos termo a vida recusando-se a respirar. Que vitória sobre a vontade de viver! Mas este triunfo é meramente individual; a vontade continua na espécie. A vida ri-se do suicídio e sorri da morte; porque para cada morte deliberada surgem milhares de nascimentos não deliberados. “O suicídio, a destruição de uma existência individual, é ato inútil porque a coisa-em-si – a espécie, a vida, ou a vontade em geral -  permanece não afetada, como permanece o arco-íris por mais rápidas que caiam as gotas que lhe dão origem. Miséria e luta continuarão depois da morte do individuo, e assim será enquanto a vontade dominar o homem.