5 de mar. de 2011

Aristoteles _ A Criação da Lógica

O primeiro grande mérito que singulariza Aristóteles é que, quase  sem precursores, quase completamente por sua aturada reflexão, criou uma ciência nova – a LÓGICA. Renan [1]Historia do Povo de Israel, vol, V, pág.38, refere-se a “má educação do espírito que não se pautou, direta ou indiretamente, pela disciplina grega”; mas a verdade é que a inteligência grega era indisciplinada e caótica até as inflexíveis formulas de Aristóteles fornecerem um meio pronto de por em prova e corrigir o raciocínio. O próprio Platão [se é possível semelhante suposição a um seu adorador] era espírito insubmisso e desregrado, subvertido muitas vezes nas brumas do mito e deixando a beleza velar, com excessiva opulência, a face da verdade. O mesmo Aristóteles, conforme veremos, violou flagrantemente seus próprios cânones, mas então ele era o produto de seu passado e, não, do futuro que seu pensamento iria criar.

A decadência política e econômica da Grécia acarretou o depauperamento do espírito e caráter helênicos, depois de Aristóteles; mas quando uma nova raça, após um milênio de trevas bárbaras, teve outra vez lazeres e capacidade para especulações filosóficas, foi o “Organon’ da Lógica traduzido por Boecio [470-525 E.C] que se converteu em molde para o pensamento medieval, em mãe legitima daquele filosofar escolatisco que, embora tornado estéril pelos dogmas constritores, ensinou e compeliu a inteligência da jovem Europa a raciocinar e subtilizar idéias, edificou a terminologia da ciência moderna e assentou as bases da maturidade de espírito que ia expandir-se e derrocar o próprio sistema e os próprios métodos que lhe deram origem e fortaleza.

Lógica significa, simplesmente, a arte e o método de pensar com acerto. È a lógica ou método de todas as ciências, disciplinas e artes; a própria musica a admite. Ela é uma ciência, porque em considerável extensão o processo de pensar exatamente pode ser reduzido a leis semelhante as da física e geometria e ensinado a todo espírito normal; é uma arte porque com a pratica dá, por fim, ao pensamento aquela inconsciente e viva perícia que faz os dedos do pianista tirar, em esforço, harmonias do teclado. Nada é tão enfadonho como a lógica e, nada, tão importante.

Neste nova ciência encontram-se vestígios da terrível insistência de Sócrates sobre as definições e do habito de Platão de apurar cada conceito. O pequeno tratado de Aristóteles sobre Definições mostra quanto sua lógica se abeberou nesta fonte. “Se quiserdes discutir comigo – disse Voltaire – define primeiro vossos termos”. Quantas controvérsias se reduziriam a um parágrafo,s e os antagonistas se atrevessem a defini-los! O alfa e o Omega da lógica, sua própria alma, é que todos os termos importantes de uma exposição sejam submetidos a exame e definição mais rigorosa. É difícil e fatigante para o espírito; mas, feito isso, tem-se meio caminho andado.

Como procederemos para definir um objeto ou um termo?  Aristóteles responde que toda a boa definição se compõe de duas partes, mantem-se sobre dois sólidos pés: primeiro, inclui o objeto em questão em uma classe ou grupo cujos caracteres gerais são também os seus – assim, o homem é, antes de tudo, um animal. Em segundo lugar, indica por que o objeto difere de todos os outros membros de sua classe – por isso, o homem, no sistema de Aristóteles, é um animal racional; sua diferença especifica que o extrema de todos os outros animais é ser racional [disto se originou interessante lenda].

Aristóteles mergulha um objeto no oceano de sua classe e em seguida retira-o embebido de sua significação genérica, com os característicos de sua família ou de seu grupo; quanto a sua individualidade e diferença, sobressaem mais claras com as justaposição a outros objetos que tanto se lhe assemelham e tanto dele diferem.

Deixando a retaguarda da lógica, avencemos até o grande campo de batalha em que Aristóteles cruza armas com Platão sobre a temerosa questão dos ‘universais’; foi a primeira escaramuça de uma guerra que se prolongou até nossos dias, e fez em toda a Europa medieval soar o estrepido dos ‘realistas’ e dos ‘nominalistas’. [1]Foi referindo-se a este debate que Friedrich Schelegel disse: “Cada homem nasce platônico ou aristotélico” (em Benn, I, 291). Um universal, para Aristóteles, é qualquer nome comum, qualquer nome capaz de aplicação universal a todos os componentes de sua classe: assim animal, homem, livro, arvore, são universais. Mas estes universais são noções subjetivas e, não, realidades objetivas tangíveis; são nomima [nomes] e não res [coisas]; tudo o que existe fora de nós é um mundo de objetos individuais e específicos, e não coisas genéricas e universais; existem homens, arvores e animais; mas o homem em geral, ou o homem universal, não existe a não ser no pensamento; é uma abstração mental cômoda e não uma presença exterior ou realidade.

Ora, Aristóteles compreendeu ter Platão sustentado que os universais tem existência objetiva; e de fato Platão afirmou que o universal é incomparavelmente mais duradouro e importante e substancial que o individual – sendo, este ultimo, leve ruga num mar perenemente revolto; os homens vêm e vão-se, mas o homem perdura eternamente. Aristóteles era um espírito pratico; espírito rijo, como diria William James; e vê a raiz do inesgotável misticismo e dos disparates escolásticos naquele “realismo” platônico; e ataca-o com todo o vigor de uma primeira polemica. Do mesmo modo que Bruto não amava menos a César do que a Roma, também Aristóteles diz: Amicus Platô, sed magis amica veritas – “Amemos a Platão, porém amemos mais a verdade”.

Algum comentador hostil poderia observar que Aristóteles [assim como Nietzsche] critica tão vivamente a Platão por ter consciência do muito que lhe tomou de empréstimo; nenhum homem é herói para os seus devedores. Mas Aristóteles assumiu uma atitude salutar; ele é quase um realista no sentido moderno; cingiu-se ao objetivo presente, ao passo que Platão se absorvia num subjetivo futuro.

Existia, na exigência socrático-platonica de definições, uma tendência para trocar as coisas e os fatos pelas teorias e idéias, os particulares pelas generalidades, a ciência pelo escolasticismo: “Platão, por fim, tornou-se tão dedicado as generalidades, que estas começaram a determinar os seus particulares, e tão dedicado as idéias que estas começaram a definir ou a selecionar seus fatos. Aristóteles prega o retorno as coisas, a ‘imarcescivel face da natureza’ e a realidade; tinha ele forte preferência pelo concreto particular, pelo individuo de carne e osso. Platão amava tanto o geral e o universal que na Republica destruiu o individuo para criar o estado perfeito.

Também a ironia da historia faz-nos comumente ver o jovem guerreiro adquirir muitas das qualidades do velho senhor a quem acomete. Temos sempre em nós grande provisão daquilo que condenamos: como só as coisas similares podem ser contrastadas com proveito, somente as pessoas similares se hostilizam; as  mais encarniçadas guerras foram incitadas por mínimas divergências de intuitos ou crenças. Os cavaleiros cruzados encontraram em Saladino um gentil-homem com quem podiam contender amistosamente; mas quando os cristãos da Europa se dividiram em campos contrários, não houve mais quartel para o mais cortes adversário.

Se Aristóteles é tão implacável com Platão, é por nele haver muita coisa de Platão; também continua a amar as abstrações e as generalidades, traindo freqüentemente essa tendência com alguma teoria especiosamente brilhante e demonstrando um esforço continuo para dominar sua paixão pelas especulações transcendentais.

Há disto um traço bem acentuado na mais característica e original das contribuições filosóficas de Aristóteles – a doutrina do silogismo. Um silogismo é uma trindade de proposições das quais a terceira [a conclusão] emana da verdade admitida nas outras duas [as premissas ‘maior’ e ‘menor’]. Exemplo: O homem é um animal racional; Sócrates é um homem; logo, Sócrates é um animal racional. O leitor matemático verá imediatamente que a estrutura do silogismo se assemelha a proposição: duas coisas iguais a uma terceira são iguais entre si. Se A é B, e C é A, conclui-se que C é B. Como no caso matemático obtêm-se a conclusão cancelando-se nas premissas seu termo comum A, assim em nosso silogismo alcança-se a conclusão cancelando-se em ambas as premissas seu termo comum ‘homem’ e combinando o que resta. A dificuldade, como os lógicos o  indicaram desde os tempos de Pirro até os de Stuart Mill, está na circunstancia de que a premissa maior do silogismo admite precisamente como verdadeiro o ponto que necessita ser provado; pois se Sócrates não for racional [ninguém põe em duvida que ele seja um homem] não é universalmente verdade que o homem seja um anima racional.
Aristóteles replicaria que quando um individuo possui grande numero de qualidades características de uma classe [Sócrates é um homem] forte presunção se estabelece de que esse individuo tem as outras qualidades características dessa classe [racionalidade]. Mas aparentemente o silogismo não é tanto um mecanismo para a descoberta da verdade como o é para a clareza da exposição da idéia.

Tudo isto, bem como outros muitos pontos do “Organon”,  tem seu valor. “Aristóteles descobriu e formulou todos os cânones da congruência teórica e todos os artifícios das discussões dialéticas com uma habilidade e argúcia que nunca se poderá louvar em excesso; e seu labor, nessa direção, contribuiu mais do que o de qualquer outro escritor isolado para o estimulo intelectual dos outros séculos”. [1]Benn, I, 307. Mas a nenhum homem que haja até agora existido a lógica não afinou grandemente o raciocínio; um manual que ensine a racionar corretamente é tão educativo como um tratado de etiqueta; pode este ser-nos útil, porém dificilmente nos conferirá nobreza. Nem mesmo o mais arrojado filosofo decantaria arroubadamente sua utilidade. Com relação a lógica, todos se portam como Virgilio mandou Dante proceder ante os que foram condenados por sua neutralidade incolor: Non ragionam dilor, ma guarda e passa [1] – Inferno, III, 60 “Não reflitamos sobre eles; olha e passa”.    

A Obra de Aristóteles

Não era difícil ao professor do reis dos reis encontrar discípulos, mesmo em cidade tão hostil com Atenas. Quando, coma idade de cinqüenta e três anos, Aristóteles criou o Liceu, tantos estudantes afluíram, que se fez mister organizar regras complicadas para manter a ordem. Os próprios estudantes estabeleciam essas regras, elegendo, de dez em dez dias, um dos seus colegas para dirigir a escola. Não se pense, porém, que lá reinasse disciplina rígida; ao contrario – as cenas cujas descrições chegaram até nós são de estudantes a tomar em comum as refeições com o mestre e a aprender com ele enquanto passeavam ao longo do campo atlético, do qual o Liceu tomou o nome. [1]O passeio chamava-se Peripatos; daqui proveio mais tarde o nome Escola Peripatetica. O campo atlético fazia parte do terreno do templo de Apolo. Liceu – o protetor dos rebanhos contra os lobos [lycos].

A nova escola não era simples imitação da platônica. Na Academia cuidava-se precipuamente de matemática e da filosofia especulativa e política, e o ensino do Liceu tendia mais para a biologia e ciências naturais. A dar-se fé a Plínio [2] His.Nat.VIII, 16; em Lewes, Aristóteles, um capitulo da Historia da Ciência, Londres, 1864, pág.15, Alexandre deu ordem a seus caçadores, guarda-caças, jardineiros e pescadores para que fornecessem a Aristóteles todos os espécimes zoológicos e botânicos que ele desejasse; narram-nos outros escritores antigos que certa ocasião tinha ele mil homens ao seu serviço, espalhados pela Grécia e Ásia, a reunirem-se exemplares da flora e fauna de todos os paises. Com esse farto abastecimento, estava em condições de criar o primeiro grande jardim zoológico do mundo. Seria fácil compreender a influencia dessa coleção sobre sua ciência e filosofia.  

Onde conseguiu Aristóteles fundos para custear tais trabalhos? Ele próprio, a esse tempo, já era homem de vultuosos rendimentos e, casando-se, aquinhoara da fortuna de um dos mais poderosos soberanos gregos. Ateneu [sem duvida com algum exagero] relata-nos que Alexandre deu a Aristóteles, para materiais e pesquisas físicas e biológicas, a quantia de 800 talentos, equivalente a cerca de quatro milhões de dólares [3]Grant, Aristóteles, Edimburgo, 1877, pág.18.

Pensam alguns que, por sugestão de Aristóteles, Alexandre enviou dispendiosa expedição a explorar as nascentes do Nilo, com o fim de descobrir as causas de suas inundações periódicas. [4] A expedição relatou que as inundações eram devidas a fusão da neve nas montanhas da Abissínia.

Obras, como o digesto de 158 constituições políticas, organizadas por Aristóteles, sugerem um grande corpo de auxiliares e secretários. Em suma – temos aqui pela primeira vez na historia européia o exemplo do erário publico custear trabalhos científicos em grande escala. Que tesouros de conhecimentos não auferiríamos se as nações modernas financiassem as investigações nessa escala relativamente considerável!

E faríamos injustiça a Aristóteles não mencionando as limitações quase fatais de aparelhagem coexistentes com esses recursos e essas facilidades sem exemplo. Ele era forçado ‘a calcular o tempo sem o relógio; a comparar graus sem o termômetro; a observar o céu sem o telescópio; e o estado do tempo sem o barômetro... De todos os nossos instrumentos matemáticos, óticos e físicos, só dispunha da régua e do compasso, e de imperfeitissimos substitutos de alguns outros. Analise química, as pesagens e medidas exatas e a perfeita aplicação da matemática a física eram desconhecidas. A atração da matéria, a lei da gravitação, os fenômenos elétricos, as condições das combinações químicas, a pressão do ar e seus efeitos, a natureza da luz, do calor, da combustão, etc., todos os fatos, em suma, em que se baseiam as teorias físicas da ciência moderna estavam totalmente ou quase totalmente por se descobrir”.

Veja-se aqui como as invenções influem no mundo: por falta de um telescópio, a astronomia de Aristóteles é um tecido de historias infantis, e a mingua de um microscópio sua biologia erra em constantes extravios. Foi, em verdade no terreno das invenções industriais e técnicas que a Grécia se mostrou muito abaixo do nível geral de seu progresso sem precedentes. O desdém dos gregos pelos trabalhos manuais resultava de que apenas escravos indiferentes se mantinham em contato com os processos da produção, e é esse estimulante contato com os maquinismos que revela defeitos e prefigura possibilidades; a invenção não seria possível aqueles que nela não tinham nenhum interesse. A barateza dos escravos retardava o desenvolvimento das invenções; os músculos eram menos caros que as maquinas.

E, dessa forma, enquanto o comercio grego conquistava o Mar Mediterrâneo e a filosofia grega conquistava o espírito mediterrâneo irradiando-se pelas outras nações, a industria grega permanecia quase egeia dos tempos em que os gregos invasores a aprenderam em Canossa, em Tirinto e Micenas, mil anos antes. Sem duvida temos aqui a razão por que Aristóteles tão raramente recorre a experiência: aparelhos para experiências ainda não existiam; e o melhor que tinha a fazer era dedicar-se a uma universal e continua observação. Não obstante, o grande volume de dados por ele e seus auxiliares coligidos tornou-se o alicerce do progresso da ciência, o livro do saber para dois mil anos – verdadeira maravilha do trabalho humano.

Contam-se por centenas de obras escritas de Aristóteles. Alguns escritores antigos atribuem-lhe a autoria de quatrocentos volumes e, outros, de um milheiro. Resta-nos apenas parte, que mesmo assim constitui uma biblioteca, fazendo-nos conceber o escopo e a grandeza do conjunto. Vem, primeiramente, as obras sobre lógica: “Categorias”, “Tópicos”, “Analise a priori” e “a posteriori”, “Proposições”, e “Refutação dos Sofistas”; estes trabalhos foram depois reunidos e editados pelos peripateticos sob o titulo geral de “Organon” de Aristóteles, isto é, o órgão ou o instrumento para o correto pensar. Em segundo, vem os livros científicos: “A Física”, “Sobre o Céu”, “Crescimento e Decadência”, “Metereologia”, “Historia Natural”, “Sobre a Alma”, “As partes dos Animais”, “Os movimentos dos Animais”, e “A geração dos Animais”. Em terceiro, estão as obras de estética: “Retórica” e “Poesia”. E em quarto, as obras mais estritamente filosóficas: “Política” e “Metafísica”. [1]Esta, ao que se sabe, é a ordem cronológica [Zeller, I, 156, e segs] Nossa discussão seguirá esta ordem, exceto no caso da Metafísica.

Temos aqui, evidentemente, a Enciclopédia Britânica da Grécia; todos os problemas sobre coisas existentes abaixo e em torno do solo encontram ai o seu lugar~; não admira, pois, que haja mais erros e absurdos em Aristóteles do que em qualquer outro filosofo que tenha escrito livros. Vê-se aqui uma síntese de conhecimentos e teorias como  não houve igual até os tempos de Spencer, e nenhuma de tanta grandiosidade. Esta foi, realmente, mais que a efetuada pelas vitórias brutais e efêmeras de Alexandre, a conquista do mundo. Se filosofia significar a procura da unidade, Aristóteles merece o grande nome que vinte séculos lhe deram – Ille Philosophus: O Filosofo.  

É natural que falte a poesia em espírito de tal pendor cientifico. Não podemos esperar de Aristóteles o mesmo brilho literário que esplende nas paginas do filosofo-dramaturgo Platão. Em vez de proporcionar-nos alta literatura que em mitos e imagens encerra [e obscurece] uma filosofia, Aristóteles dá-nos ciência, técnica, abstrata, condensada. Se o procurarmos como leitura amena enganamo-nos. Em vez de expandir-se em vôos literários, como faz Platão, ele cria a terminologia da ciência e da filosofia; mal poderemos falar hoje sobre qualquer ciência sem usar termos inventados por Aristóteles; esses termos jazem como fosseis no substractum de nossa linguagem: faculdade, meio, máxima [que é, em Aristóteles, a maior das premissas de um silogismo], categoria, energia, atualidade, motivo, fim, principio, forma -  esta moeda corrente do pensamento filosófico foi cunhada por seu espírito. E talvez esta passagem do dialogo ameno para o preciso tratado cientifico fosse um passo necessário ao desenvolvimento da filosofia; e a ciência, que é a base e a espinha dorsal da filosofia, não poderia desenvolver-se antes do evolver de seus métodos exatos e próprios, de aplicação e expressão. Aristóteles escreveu também diálogos literários, que em seu tempo eram lidos em tão alto conceito como os de Platão: mas perderam-se, assim como se perderam os tratados científicos de Platão. Provavelmente o tempo preservou da destruição a melhor parte de cada um desses dois homens.

Afinal, é possível que obras atribuídas a Aristóteles não sejam suas e, sim, de discípulos e continuadores que embalsamaram em suas notas a desataviada essência das preleções do mestre. É de  crer-se que em sua vida Aristóteles não escreveu obras técnicas, a exceção das sobre lógica e retórica e que a forma atual de seus tratados de lógica possa atribuir-se a publicação feita mais tarde. Quanto a Metafísica e a Política, parece que as notas por ele deixadas foram reunidas sem revisão ou alteração pelos encarregados desse trabalho. Até a igualdade de estilo que assinala as obras aristotélicas e serve de argumento aos que defendem a sua autoria direta, pode, afinal de contas, não passar de uniformidade adotada em todos os trabalhos da Escola Peripatetica. A este respeito deflagram controvérsias de ardor quase épico, como no caso de Homero; mas ao atarefado leitor não interessará aprofundá-las, nem tem um modesto estudioso da filosofia competência para tentar solve-las. [1] Confronte-se com Zeller, II, 204, nota e Shule, Historia dos Livros de Aristóteles. Podemos, entretanto, estar certos de que Aristóteles é o autor espiritual de todos os livros que tragam seu nome. Mesmo que em alguns possa ser alheia a mão que os escreveu, a verdade é terem nascido da sua cabeça e do seu coração. [2]O leitor que desejar conhecer diretamente o filosofo, achará na Meteorologia um interessante exemplo da obra cientifica de Aristóteles; e haurirá muitos conhecimentos práticos na Retórica; e achará o melhor de Aristóteles nos livros I e II da Ética e nos I e IV da Política. A melhor tradução da Ética é a de Welldon; da Política, a de Jowett. O Aristóteles, de Sir Alexandre Grant,é um livro singelo; o Aristóteles de Zeller (vols, III e IV de sua obra Os Filósofos Gregos) é clássico, mas seco; Os Pensadores Gregos (Vol.IV) de Gomperz, é magistral, mas difícil.            

Aristóteles e a Ciência Grega

Ambiente Histórico
Aristóteles nasceu em Stagira, cidade da Macedônia situada a cerca de duzentas milhas ao norte de Atenas, no ano 384 a.C. Seu pai era amigo e medico de Amintas, rei da Macedônia e avô de Alexandre. O próprio Aristóteles parece ter sido membro da confraria medica de Asclepiades. Ele foi educado em odor da medicina, assim como mais tarde muitos filósofos o foram em odor da santidade; teve todas as oportunidades e incitamentos para desenvolver seu pendor para a ciência, da qual ia tornar-se fundador.

Temos varias versões, a escolha, sobre sua adolescência. Uma, apresenta-o a esbanjar seus bens em uma vida desregrada, após o que se alista no exercito para evitar a fome, voltando em seguida a Stagira para exercer a medicina, donde segue para Atenas, aos trinta anos, para estudar filosofia com Platão. Versão mais favorável o faz ir para Atenas aos dezoito anos, tornando-se lá, desde logo, discípulo do grande Mestre; todavia, mesmo nesta versão mais versossimil, existem suficientes referencias a uma adolescência desmandada e perdulária [1].Girote,Aristóteles, Londres, 1872, pág 4; Zeller, Aristóteles e os Primeiros Peripatéticos, Londres, 1897, V.1, pág 6.f. Que o leitor escandalizado se console com a circunstancia de que em qualquer das duas versões nosso filosofo vai finalmente ancorar a sombra dos calmos bosques do jardim da Academia.

Com Platão estudou oito anos – ou vinte; e o fato de que o platonismo impregna as especulações de Aristóteles – até nas mais antiplatonicas – faz pensar na hipótese dos vinte anos.

De bom grado imaginamos de grande ventura esses anos em que um aluno de viva inteligência e seu incomparável mestre deambulavam, como dois enamorados, pelos jardins da filosofia. Mas ambos eram gênios;e é sabido que os gênios se harmonizam tanto entre si como a dinamite e o fogo. Separava-os quase meio século; para a imatura compreensão era difícil suprimir esse abismo da diferença de idades, de modo a corrigir a incompatibilidade das almas. Platão reconhecia o grande valor daquele seu novo e estranho discípulo da raça do norte, que consideravam bárbara, e citou-o uma vez como o “Nous” da Academia, isto é, a Inteligência personificada.

Aristóteles prodigalizou dinheiro para colecionar livros [que naqueles tempos eram feitos a mão]; foi o primeiro, depois de Euripedes a organizar uma biblioteca; e entre suas muitas contribuições, há os fundamentos da classificação bibliográfica. Essa era a razão por que, ao referir-se a residência de Aristóteles, dizia Platão: ‘casa do leitor’ e parece que estas palavras envolviam um louvor sincero, e não sutil e intencional alfinetada ao excessivo amor aos livros, como alguém murmurou. Divergência mais autentica surgiu no fim da vida de Platão. Desenvolveu-se um ‘complexo de Edipo’ na alma de nosso ambicioso jovem contra seu pai espiritual, pela muita afeição comum a filosofia, pelo que começou a sugerir que a sabedoria não morreria com Platão – ao passo que o velho sábio se referia ao discípulo como a um poldro que escoicinhasse a mãe depois de mamar-lhe todo o leite [1] Benn, Os Filósofos Gregos, Londres, 1882, vol.1, pág.283 (2) Vol.I, pág.11. O douto Zeller, em cujas paginas Aristóteles quase alcança o Nirvana da respeitabilidade, é de parecer que se devam rejeitar essas referencias; mas podemos presumir que tanto fumo deve indicar algum fogo.

Outros episódios deste período de sua vida em Atenas são ainda mais problemáticos. Narram-nos alguns biógrafos que Aristóteles fundou uma escola de oratória para rivalizar com a de Isocrates e que entre seus alunos figurava o rico Hermias, que se tornou o autocrata da cidade-estado de Atarneus. Havendo atingido essa culminância, Hermias convidou Aristóteles a transferir-se para sua corte, e, no ano 344 a.C., recompensou o professor pelo que por ele fizera dando-lhe em casamento uma irmã [ou sobrinha]. Poder-se-ia suspeitar ter sido um presente de grego; mas os historiadores apressam-se a certificar-nos de que Aristóteles, apesar de sua genialidade, foi muito feliz com a esposa, a qual se refere com as mais afetuosas palavras em seu testamento.

Foi precisamente um ano depois que Filipe, o rei da Macedônia, mandou chamar Aristóteles para, em Pela, sua corte, encarregar-se da educação de Alexandre. A circunstancia de o maior monarca do tempo, que, certo, procuraria o melhor mestre, preferir Aristóteles para professor do futuro dominador do mundo, testemunha a reputação crescente de nosso filosofo.

Filipe resolvera dar ao filho a mais apurada educação, por ter formado ilimitados planos para ele. Sua conquista da Tracia em 356 a.C, tornou-o Senhor de minas de ouro que prontamente lhe forneciam desse metal quantidade dez vezes maior do que a de prata fornecida a Atenas pelas decadentes minas de Laurion; seus súditos era robustos camponeses e soldados ainda não degenerados pelo luxo e pelos vícios das cidades: esta circunstancia lhe possibilitaria a sujeição de um cento de pequenas cidades livres e a conseqüente unificação política da Grécia.

Filipe não simpatizava com o individualismo que favorecera a arte e a inteligência da Grécia, mas ao mesmo tempo lhe desintegrara a ordem social; em todas aquelas pequeninas capitais não via grande cultura e a arte inexcedível, e sim a corrupção comercial e o caos político; via insaciáveis negociantes e capitalistas absorverem os recursos vitais da nação, políticos incompetentes e oradores hábeis a arrastarem o povo operoso a conspirações e desastrosas guerras, facções que se cindiam em classes e classes que se cristalizavam em castas: aquilo, dizia Filipe, não era uma nação e sim um ajuntamento de indivíduos – gênios e escravos; propunha-se ele por ordem na balburdia, elevando e unindo toda a Grécia, que se tornaria forte para servir de centro político e fundamento do mundo.

Em sua adolescência em Tebas, Filipe aprendera com o nobre Epaminondas a arte da estratégia militar e organização civil; e agora, com coragem tão ilimitada como a ambição, melhorava a sua instrução. Em 388 a.C. derrotou os atenienses em Queroneia e viu por fim uma Grécia unida, embora acorrentada. E quando, após essa vitória, planejava o modo de, ele e o filho, dominarem e unificarem o mundo, foi morto pela mão de um assassino.

Quando Aristóteles chegou, Alexandre era um terrível menino de treze anos; ardente, epiléptico, quase alcoólico; seu divertimento era amansar cavalos para os outros indomáveis. Não foram de grande eficácia os esforços do filosofo para arrefecer o ardor daquele vulcão. Alexandre tinha melhor êxito com Bucefalo do que Aristóteles com Alexandre.

“Durante algum tempo – diz Plutarco – Alexandre amou Aristóteles não menos do que se fosse seu próprio pai, dizendo que, se um lhe dera a vida, o outro lhe ensinara a arte de viver”.

[“A vida – diz um sutil filosofo grego – é um dom da natureza, ao passo que uma vida bela é um dom da sabedoria”]. “Quanto a mim – declarou Alexandre em uma carta a Aristóteles – prefiro aperfeiçoar-me no conhecimento do que é bom, a aumentar meu poderio e meus domínios”. Mas isto não era talvez mais do que grande amabilidade juvenil; sob o entusiasmo do noviço da filosofia latejava o natural indômito do filho de uma princesa e de um rei bárbaros; os freios da razão eram frágeis em excesso para manter disciplinadas suas paixões atávicas; dois anos depois Alexandre abandonou a filosofia para galgar o trono e governar o mundo.

A historia dá-nos a liberdade de crer {embora nos causem suspeita estes pensamentos amáveis] que a ânsia unificadora de Alexandre hauria de sua força e grandiosidade nas idéias de seu mestre, o mais sintético dos pensadores na historia da filosofia – e que o estabelecimento da ordem dos domínios políticos, por parte do discípulo, e nos domínios filosóficos, por parte do preceptor, não passava de aspectos diversos de um só projeto nobre e arrojado; seriam dois eminentes macedônios a ordenar o caos de dois mundos.

Partindo para conquistar a Ásia, Alexandre deixou após si, nas cidades da Grécia, governos que lhe eram favoráveis, mas populações francamente hostis. A longa tradição de uma Atenas livre e anteriormente imperialista, tornava intolerável a submissão, mesmo a um afamado déspota conquistador do mundo; e a acida eloqüência de Demóstenes conservava a Assembléia sempre a pique de revoltar-se contra o ‘partido macedonio’ que empunhava as rédeas do governo. Quando Aristóteles, após outro período de viagens, regressou a Atenas no ano 334 a.C., aderiu muito naturalmente ao grupo macedônio, não se preocupando de ocultar sua aprovação a política unificadora de Alexandre.

Ao observarmos a notável sucessão de trabalho de especulação e pesquisas a que Aristóteles se deu nos últimos doze anos de sua vida, e ao acompanhar-lhe as múltiplas tarefas de organizar sua escola e coordenar tão grande riqueza de conhecimentos, que antes nunca havia povoado o espírito de um só homem, devemos lembrar que não eram de calma e segurança os tempos de sua investigação da verdade e que a cada instante podia enfarruscar-se o firmamento político, desencadeando a tormenta na sua pacifica vida de filosofo. Tendo-se em mente esta circunstancia é que bem poderemos compreender a filosofia política de Aristóteles – e o seu fim trágico.