26 de mar. de 2011

Spinoza_A Ética

A mais preciosa produção da moderna filosofia está lançada em forma geométrica, de modo a tornar o pensamento euclidianamente claro; mas o resultado é uma obscuridade lacônica que pede para cada linha um Talmud de comentários. Os escolásticos já haviam formulado assim o seu pensamento, mas não com tamanha profundidade; e eles o esclareciam com posteriores e bem ordenadas conclusões. Descartes sugeriu que a filosofia só poderia ser exata quando expressa em forma de matemática; mas nunca pôs a sua de acordo com esse ideal Spinoza, impressionado com as realizações de Copérnico, Kepler e Galileu, atacou o problema do seu espírito treinado em matemáticas, que ele tinha como a base de todo o processo cientifico. Para nosso cérebro de diferente textura e resultado foi uma exaustiva concentração da matéria e da forma; e somos tentados a nos consolar denunciando esta filosofia geométrica como um jogo de xadrez no qual axiomas, definições, teoremas e provas são manipulados como reis, bispos, cavalos e peões; uma lógica solitária inventada para consolar a solitude de Spinoza. A ordem é coisa contrária ao nosso espírito; preferimos seguir ao sabor da fantasia e tecer a nossa filosofia com sonhos. Mas Spinoza só tinha um desejo – reduzir o intolerável caos do mundo a unidade. Possuía muito mais a fome nórdica pela verdade do que a ânsia mediterrânea da beleza;o artista era nele um arquiteto a construir um sistema de pensar de perfeita simetria.

O estudioso moderno também esbarra na terminologia de Spinoza. Escrevendo em latim, era compelido a expressar o seu moderníssimo pensamento por meio de termos medievais e escolásticos; em nenhuma outra língua a filosofia encontrava material de expressão. Assim usa ele o termo substancia onde diríamos hoje realidade ou essência; perfeito onde diríamos completo; ideal onde diríamos  objeto; objetivamente onde dizemos subjetivamente e formalmente onde dizemos objetivamente. São tropeços pelo caminho que detêm o fraco mas estimulam os fortes.

Em resumo, Spinoza não é filosofo para ser lido, mas sim estudado; temos que nos aproximar dele como nos aproximamos de Euclides, admitindo que nessas breves duzentas paginas um homem lançou o inteiro pensamento de sua vida, numa escultura estóica onde todo o supérfluo foi omitido. Não esperem apanhar-lhe a essência numa rápida leitura; nunca um tratado de filosofia permitiu menos tal façanha. Cada parte depende das partes antecedentes; algumas proposições obvias e na aparência desnecessárias surgem de súbito como pedras angulares de um soberbo desenvolvimento lógico. Não há compreender nenhuma das suas seções antes de lê-lo todo – lê-lo e ponderá-lo. Não encampamos, entretanto, a entusiástica exageração de Jacobi, quando afirma que “só entenderá Spinoza aquele para o qual não haja uma só linha obscura em sua Ética”. “Aqui,sem duvida”, diz Spinoza na segunda parte do seu livro, “o leitor sentir-se-á confuso e ponderará muita coisa que o fará vacilante; por isso pelo que vá comigo devagar e não forme juízo antes de ler tudo”. Nunca ler o livro de uma vez, mas por partes, com interrupções. Depois de conclusa a leitura, considerar que está começando a entendê-lo. Ler então algum comentário, como o Spinoza, de Pollock ou o Estudo de Spinoza, de Martineu – ou ambos. Finalmente, reler a Ética – e tudo parecerá novo. Depois desta segunda leitura ficareis para sempre um apaixonado da filosofia.

Spinoza_O Progresso do Intelecto

Abrindo o livro imediato de Spinoza damos já no começo com uma das gemas da literatura filosófica. Conta como abandonou tudo pela filosofia.

*Depois que a experiência me ensinou que todas as coisas comuns da vida são vãs e fúteis, e quando vi que todas as coisas que eu temia e que me temiam nada tinham de bom ou de mau em si, salvo no que podem afetar o espírito, determinei inquirir se não havia algo verdadeiramente bom, capaz de comunicar sua bondade e por meio da qual o espírito pudesse ser impressionado com exclusão de tudo mais. Determinei investigar se me era possível descobrir e atingir a faculdade do gozo eterno de uma continua felicidade...Atentei nas vantagens que as honras e as riquezas conferem e vi que eu teria de ser excluído da sua aquisição, caso desejasse seriamente investigar meu assunto...Mais um homem possui honras e riquezas, mais o seu prazer cresce, e em conseqüência mais e mais as procura aumentar – e quando não as alcança o sofrimento é profundo. A fama tem isso contra si, que se as procuramos havemos que dirigir nossa vida de modo a agradar a fantasia dos homens, evitando o que os desgoste e fazendo o que lhes agrade...Mas a dedicação a uma coisa eterna e infinita unicamente ela nos dá ao espírito um prazer continuo, livre de decepções...O maior dos bens é o conhecimento da união do espírito com o universo...Quanto mais o espírito sabe, mais compreende sua força e a ordem da natureza; quanto mais compreende sua força, mais apto será para dirigir-se e estabelecer suas regras; e quanto mais compreende a ordem da natureza, mais facilmente será capaz de libertar-se das coisas inúteis; aqui está todo o método.

Só do conhecimento, portanto, vem poder e liberdade; e a única felicidade continua está na prossecução do conhecimento e na alegria da compreensão. Entrementes, porém, o filósofo deve permanecer homem e cidadão – e qual seu método de vida durante a caça a verdade? Spinoza estabelece uma simples regra de vida com a qual se conformou fielmente.

1_Falar de maneira compreensível ao povo e por ele fazer tudo quanto não nos prive de atingir nossos objetivos;
2_Gozar unicamente os prazeres necessários a conservação da saúde;
3_Por fim, ganhar unicamente o necessário para a manutenção da vida e da saúde, e para o custeio do que não se oponha ao que procuramos. [*De Emendatione]
   
Mas estabelecendo essas proposições Spinoza se vê defrontado de um problema: Como posso saber se meu conhecimento é conhecimento, se posso confiar em meus sentidos quanto ao material que levam a razão, e se minha razão merece confiança, na sua apreciação desse material trazido pelos sentidos? Não será prudente examinar o veiculo antes de nos confiarmos a ele? Não será prudente fazermos o possível para melhorá-lo? “Antes de mais nada”, diz Spinoza baconicamente, “um meio tem que ser achado para melhorar e clarificar o intelecto”. Quer dizer, havermos de distinguir cuidadosamente entre as várias formas de conhecimento a fim de adotarmos o melhor.

Primeiramente, há os conhecimentos por ouvir dizer, como o que me faz conhecedor do dia em que nasci. Em segundo, há vagas experiências, conhecimentos “empíricos” no sentido depreciativo, como quando um médico sabe que um tratamento não possui base cientifica mas que por “impressão geral” é “usualmente” empregado. Em terceiro, imediata dedução, ou conhecimento obtido pelo raciocínio, como quando concluo sobre a imensidade do sol com base na diminuição dos objetos a medida que deles nos afastamos. Este tipo de conhecimento é superior aos anteriores, mas ainda assim sujeito a súbitas refutações da experimentação direta; por milhares de anos a ciência raciocinou deste modo sobre um “éter” que agora já não encontra nenhum favor entre os físicos. Logo, a melhor forma de conhecimento é a quarta, que provêm da imediata dedução e direta percepção [como quando vemos que 6 é o numero que falta na proporção de 2:4::3:x, ou quando percebemos que o todo é maior que a parte. Spinoza crê que os homens versados em matemáticas conhecem desta maneira intuitiva a mor parte de Euclides; admite, porém, com tristeza, que “o que podemos conhecer por este processo é bem pouco”.

Na Ética, Spinoza reduz as primeiras duas formas de conhecimento a uma; e denomina conhecimento intuitivo a percepção das coisas sub specie eternitatis – ou em suas relações eternas. Daí a fundamental distinção do filosofo [base do seu sistema] entre a “ordem temporal” – o “mundo” das coisas incidentes – e a “ordem eterna” – o mundo das leis e da estrutura.

Vamos ver como se distinguem:

*É preciso notar que não admito aqui como serie de causas e entidades reais uma serie de coisas individuais mutáveis, mas sim a serie de coisas fixas e eternas. Porque para a fraqueza do homem seria impossível seguir a serie das coisas individuais mutáveis, não só por serem de numero infinito como também em vista das inúmeras circunstancias ocorrentes numa mesma coisa, cada uma das quais podendo ser a causa da existência da coisa. Na realidade a existência de coisas particulares não tem conexão com a sua essência e não é uma verdade eterna. Todavia não há necessidade de que compreendamos a série de coisas individuais, mutáveis, porque a essência delas só pode ser encontrada nas coisas fixas e eternas e nas leis nelas inscritas como verdadeiros códigos e de acordo com as quais foram criadas e dispostas. Estas coisas individuais e mutáveis dependem tão essencial e intimamente das fixas que sem estas não poderiam existir, nem ser concebidas. [*Bacon, Novum Organum,II.]

Se quando estudamos a obra prima de Spinoza tivermos diante dos olhos esta passagem, muito da sua Ética, que parece desesperadoramente complexa, se tornará perfeitamente compreensível.      

Spinoza_Tratado Sobre a Religião e o Estado

Estudemos seus quatro livros na ordem em que os escreveu.
O Tractatus Theologico-Politicus é talvez o menos interessante para nós porque o movimento de alta critica que, com risco da vida, Spinoza iniciou, se desenvolveu ao ponto que suas mais arrojadas proposições não passam hoje de lugares comuns. Não é negocio para um autor provar proposições de maneira exaustiva; suas conclusões tornam-se moeda corrente para todos os espíritos educados e suas obras deixam de apresentar-se com aquele mistério que nos atrai. Foi o que se deu com Voltaire e com o tratado de Spinoza sobre a religião e o estado.

O principio fundamental do livro é que a linguagem da Bíblia é deliberadamente metafórica, ou alegórica; não somente porque compartilha da tendência dos orientais para o colorido ornamento literário e o exagerado descritivo, como porque os profetas e apóstolos, com o fim de impressionar as imaginações, eram forçados a cortejar o gosto popular. “As Escrituras foram primariamente elaboradas para um certo povo e secundariamente para toda a espécie humana; em conseqüência tinham de ser adaptadas no Maximo possível a compreensão das massas” [*Tractatus]. “As Escrituras não explicam as coisas pelas suas causas secundárias; apenas as descrevem na ordem e no estilo mais próprios para impelir os homens, sobretudo os ineducados, a devoção...Seu objeto não é convencer a razão, mas empolgar a imaginativa [*Cap.6]. Daí a abundancia de milagres e as constantes aparições de Deus. “As massas querem que o poder e a providencia de Deus sejam mais demonstráveis com o desdobramento de fatos extraordinários, que contrariam a concepção corrente dos fenômenos naturais...Supõem, na realidade, que Deus se conserva inativo enquanto a natureza age da maneira normal; e vice-versa, que o poder da natureza e as causas naturais ficam de lado quando Deus entra a agir; imaginam pois os dois poderes distintos entre si” [*Tractatus]. [Aqui entra a idéia básica da filosofia de Spinoza – que Deus e a natureza são um]. Os homens são propensos a crer que em beneficio deles Deus rompe a ordem natural das coisas; assim os judeus deram uma interpretação miraculosa da dilatação do dia com o fim de impressionar aos outros [ou talvez a si próprios] e provar que eram eles os favoritos de Deus; incidentes como este abundam na historia primitiva de todos os povos. Exatidão literal e sóbria não impressiona; se Moisés houvesse dito que fora o vento do leste [como deduzimos de uma passagem posterior] que abriu o caminho do Mar Vermelho, não teria impressionada a imaginação das massas as quais se dirigia. Os apóstolos recorreram aos milagres pela mesma razão que recorriam as parábolas – necessidade de adaptação ao espírito das massas. A maior influencia de tais homens, comparada com a dos filósofos e cientistas, reside no vivido e metafórico das formas de expor os fatos, que os fundadores da religião se vêem compelidos a adotar.

Interpretada de acordo com esses princípios, diz Spinoza, a Bíblia nada contem que contrarie a razão [*Introdução]. Mas interpretada literalmente mostra-se inçada de erros, contradições, obvias impossibilidades -  como as do Pentateuco escrito por Moisés. Já a interpretação filosófica revela através das névoas da alegoria e da poesia o pensamento profundo de grandes pensadores e chefes, e torna compreensível a persistência da Bíblia e sua enorme influencia sobre os homens. As duas interpretações cabem: o povo sempre exigirá uma religião imaginosa, aureolada de sobrenatural; se uma destas formas de fé for destruída, ele criará outra. Mas o filosofo sabe que Deus e Natureza são a mesma coisa, agindo necessariamente e de acordo com leis invariáveis. É a essa majestática Lei que Spinoza obedece e reverencia.[*Cap.5]. Ele sabe que nas Escrituras “Deus é descrito como um legislador ou príncipe, dotado de piedades, senso de justiça, etc., meramente por concessão a ignorância e ao fraco entendimento do povo; que na realidade Deus age...pela necessidade de sua natureza, e seus decretos...são verdades eternas [*Cap.4].

Spinoza não faz separação entre o Velho e Novo Testamento, vendo que a religião dos judeus e a dos cristãos se tornam única, sempre que, postas de lado as desinteligências filhas de ódio, a interpretação filosófica mostra a mesma essência e origem em fatos rivais. “Sempre me admirei que pessoas atreitas a exaltarem-se como fieis praticantes da religião cristã – quer dizer, praticantes do amor, da alegria, da paz, da temperança e da caridade pra com todos os homens – disputassem com tão rancorosa animosidade, e diariamente denunciassem tanto ódio, em vez das virtudes que professam” .[*Cap.6]. Os judeus sobreviveram sobretudo por motivo do ódio que os cristãos lhes votavam; a perseguição lhes deus a unidade e a solidariedade necessárias a uma continua existência racial; sem as perseguições ter-se-iam misturado com os outros povos da Europa, perdendo-se na massa que os envolvia.  Mas não há razão para que o judeu e o cristão filósofos, depois de afastada toda a insensatez, não cheguem a acordo em matéria de credo, de modo a viverem em paz e em cooperação.

O primeiro passo para isto, pensa Spinoza, seria uma compreensão idêntica de Jesus. Arredados os dogmas eivados de improbabilidade os judeus reconheceriam Jesus como o maior e o mais nobre dos profetas. Spinoza não aceita a divindade de Jesus, porém o coloca como o primeiro dos homens. “A eterna sabedoria de Deus... mostra-se em todas as coisas e em Jesus Cristo mais que em tudo” [*Epistola, 21].Cristo foi mandado não só para ensinar aos judeus mas a toda a espécie humana”: por isso “acomodou-se a compreensão do povo...e com tanta freqüência falava por parábolas” [*Cap.4]. Spinoza considera que a ética de Jesus é quase sinônima de sabedoria; reverenciando-o, o homem alça-se ao amor intelectual de Deus”. Tão nobre figura, libertada dos impedimentos dos dogmas que só conduzem a disputas e divergências, arrastará para si todos os homens; e talvez em seu nome um mundo torturado de guerras suicidas e ódios encontre afinal a unidade da fé e a possibilidade do irmamento.

Spinoza_Na História e Na Biografia

1] A odisséia dos judeus
A História dos Judeus, a partir da Dispersão, é pura epopéia. Expelidos da pátria depois da queda de Jerusalém [70 e.C], e por contingências das guerras e do comercio espalhados por todas as nações de todos os continentes; perseguidos e dizimados pelos adeptos das grandes religiões – Cristianismo e Islamismo, nascidas do próprio judaísmo; impelidos pelo regime feudal da posse da terra e impedidos pelo regime das corporações profissionais de penetrar nas industrias; encurralados em guetos superlotados; caçados pela populaça e roubados pelos reis; construindo com o seu dinheiro e a sua atividade comercial as cidades e centros indispensáveis a civilização; excomungados e fora da lei, insultados e injuriados; além disso, sem nenhuma estrutura política, sem nenhuma compulsão legal para a unidade, sem sequer uma língua única, este admirável povo, entretanto, manteve-se em corpo e alma, preservou sua integridade racial e cultural, guardou ciumentamente seus velhos rituais e todas as suas tradições, esperou, com infinita paciência, o dia da liberdade e emergiu por fim, mais forte do que nunca, enobrecido em todos os campos pela contribuição dos seus gênios e triunfalmente foi empossado, após dois mil anos de vida errante, no território da pátria primitiva. Que drama pode rivalizar a variedade destas cenas e a gloria e a justiça desse desenlace? Que obra de ficção pode equiparar-se ao romance desta realidade?

A dispersão dos judeus começou muitos séculos depois da queda da Cidade Santa; através de Tito, Sidon e outros portos espalharam-se por todos os recôncavos do Mediterrâneo – Atenas e Antioquia, Alexandria e Cartago, Roma e Marselha, e chegaram a Espanha. Em seguida a destruição do Templo a dispersão assumiu aspecto de migração em massa, e por ultimo o fluxo seguia duas correntes  - uma, ao longo do Danúbio e do Reno, e daí, mais tarde, para a Polônia e a Rússia; outra, rumo a Portugal e Espanha, com a conquista dos mouros [711 e.C]. Na Europa Central os judeus se distinguiram como mercadores e financistas; na Península absorveram o ‘lore’ filosófico, matemático e medico dos árabes e desenvolveram cultura própria nas grandes escolas de Cordova, Barcelona e Sevilha. Nesse trato do continente os judeus representaram durante os séculos doze e treze papel importantíssimo, no transmitir a antiga cultura do Oriente aos europeus ocidentais. Foi em Cordova que Moisés Maimonides [1135-1204], o maior físico dos tempos, escreveu o seu famoso comentário da Bíblia, Guia dos Perplexos; foi em Barcelona que Hasdai Cresças [1370-1430] lançou as heresias que abalaram o judaísmo.

Os judeus da Espanha floresceram e prosperaram até a conquista de Granada por Fernando, em 1492, e a final expulsão dos mouros. Perderam então a liberdade de que vinham gozando sob o domínio leniente do Islam: a Inquisição cai sobre eles com o dilema – batismo e pratica do cristianismo ou exílio e confisco dos bens. Não que a Igreja lhes fosse violentamente hostil – certos papas repetidamente protestaram contra as barbaridades da Inquisição; mas o rei da Espanha achava negocio encher seu tesouro com as riquezas lentamente acumuladas pelo povo advena. Quase ao mesmo tempo que Colombo descobria a América, Fernando descobria os judeus.

A grande maioria aceitou a menos cruel das alternativas e procurou em redor de si um lugar de refugio. Muitos fugiram por mar para Genova e outros portos da Itália; repelidos, recuaram para a costa da África onde inúmeros foram mortos e estripados – por causa das jóias que constava trazerem engolidas. Pequena quantidade localizou-se em Veneza. Outros financiaram a viagem de Colombo, um homem talvez da sua raça, na esperança de que o navegador lhes encontrasse uma pátria nova. Muitos embarcaram nos frágeis navios da época e se meteram pelo Atlântico, até encontrar na generosa Holanda abrigo e equidade. Entre estes estava uma família de judeus portugueses de nome Espinhosa.

Depois disso a Espanha decaiu e a Holanda prosperou. Os judeus construíram sua primeira sinagoga em Amsterdam, no ano de 1598; e quando, setenta e cinco anos mais tarde, construíram outra – a mais magnificante da Europa, os seus vizinhos cristãos os auxiliaram a financiar a empresa. Os judeus mostravam-se felizes, a julgarmos pelo aspecto eufórico dos mercadores e rabinos que Rembrandt imortalizou em suas telas. Mas lá pelo meio do século dezessete a calma foi perturbada por aguda controvérsia na sinagoga. Uriel da Costa, um apaixonado moço que havia caído sob a influencia cética da Renascença, escreveu um tratado onde atacava com vigor a crença em outra vida. Esta sua atitude não era contraria a velha doutrina judaica; mas a Sinagoga compeliu-o a retratar-se em publico, receosa de incorrer no desfavor de uma comunidade que recebera os judeus generosamente, mas que podia reagir com aspereza contra uma heresia que vinha ferir a verdadeira essência do cristianismo. A formula da retratação e da penitencia mandava que o paciente se deitasse na soleira da sinagoga para que todos os membros da congregação lhe passassem sobre o corpo. Humilhado a fundo, Uriel lançou uma denuncia terrível contra seus perseguidores e suicidou-se [*Gutzkow pôs com muito sucesso esta historia em drama].

Isto, em 1647. Por essa época Baruch Spinoza, “o maior judeus dos tempos modernos” [*Renan, Marc Aurele], era um menino de quinze anos e o mais querido estudante da sinagoga.

2] A educação de Spinoza
Foi esta odisséia dos judeus que fez dele irrevogavelmente, apesar de excomungado, um judeu. Embora seu pai fosse negociante prospero, o filho não sentiu nenhuma inclinação para essa carreira, preferindo gastar o tempo na sinagoga, a absorver a religião e a historia de sua raça. Era um estudante notável e já olhado pelos mais velhos como futuro luminar do judaísmo. Cedo passou da Bíblia para o estudo meticuloso do Talmud, e deste para os escritos de Maimonides, Levi Ben Gerson, Ibn Ezra e Hasdai Crescas; sua voracidade levou-o até a filosofia mística de Ibn Gebirol e as sutilizes cabalísticas de Moisés de Cordova.

Impressionou-o a identificação de Deus com o universo – idéias de Moises de Cordova; seguiu esta idéia em Bem Gerson, que ensinava a eternidade do mundo; e também em Hasdai Crescas, que admitia ser a matéria do universo o corpo de Deus. Em Maimonides achou uma analise favorável da doutrina de Averroes sobre a imortalidade impessoal; no Guia dos Perplexos, porém, encontrou mais perplexidade do que Rumo. O grande rabino propunha mais questões do que as explanava; e Spinoza ficou com as traduções e improbabilidades do Velho Testamento a lhe latejarem no cérebro, apesar das soluções dadas por Maimonides.

Os mais hábeis defensores da fé são os seus maiores inimigos, porque a excessiva sutileza engedra duvidas, e estimula o espírito da analise. Isso aconteceu a Spinoza ao ler Maimonides, e ainda mais ao ler os comentários de Ibn Ezra, no qual os problemas da velha fé são formulados mais diretamente, e muitas vezes abandonados como insolúveis. Quanto mais Spinoza meditava, mais as singelas certezas da velha fé se fundiam na duvida.

A curiosidade o levou a estudar o que os pensadores do mundo cristão haviam escrito sobre os grandes problemas de Deus e do destino humano. Para isso aprendeu latim com um mestre holandês, Van den Ende, e lançou-se a um campo mais largo de experiência e conhecimento. Seu novo professor era um tanto herético, analista de credos e governos, espírito audaz que deixou o remanso da biblioteca para juntar-se a uma conjura contra o rei da França, vindo a morrer no cadafalso em 1674. Van den Ende tinha uma linda filha que se tornou a rival do latim nas afeições de Spinoza; com tal estimulo até um rapaz hoje estudaria essa língua. Mas a rapariga não  tinha cérebro na altura de compreender Spinoza e logo que outro pretendente apareceu, cheio de presentes, abandonou-o. É de crer que foi isso o que o transformou em filosofo.

Seja como for, Spinoza senhoreou-se do latim e penetrou desassombrado no acervo do pensamento medieval europeu. Parece ter estudado Sócrates, Platão e Aristóteles; mas pendeu para os grandes atomistas, Demócrito, Epicuro e Lucrecio; os estóicos deixaram nele indelével marca. Estudou os filósofos escolásticos, dos quais tomou não só a terminologia como também o método geométrico de exposição por meio de axioma, definição, proporção, prova, escolio e corolário. Estudou Bruno [1548-1600], o magnífico rebelde cujo ardor ‘nem todas as neves do Cáucaso poderiam arrefecer’, sempre a mudar de país e de credo e, na ânsia de investigar e perquerir “incapaz de regressar pela porta de onde entrava”, até que a Inquisição o condenou a ser morto “o mais misericordiosamente possível e sem derrame de sangue” – isto é, queimado vivo. Que riqueza de idéias havia no cérebro desse romântico filho da Itália! A idéia central da unidade; a de que toda realidade é uma substancia – uma em origem e uma em causa; a de que Deus e esta unidade se confundem. Para Bruno, espírito e matéria eram unos; cada partícula da realidade se compunha inseparavelmente do físico e do psíquico. O objeto da filosofia, portanto, consistia em aprender a unidade na diversidade, em ver o espírito na matéria, em descobrir a síntese em que as contradições se fundem, em elevar-se ao supremo conhecimento da unidade universal que é o equivalente intelectual do amor de Deus. Cada qual destas idéias se integrou na estrutura intima do pensamento de Spinoza.

Finalmente foi influenciado por Descartes [1596-1650], pai, na moderna filosofia, da tradição subjetiva e idealística [como Bacon o foi da tradição objetiva e realista]. Para os seus seguidores franceses e para os seus inimigos ingleses, a noção central em Descartes era do primado da consciência, daí a proposição de que o espírito conhece a si mesmo mais direta e imediatamente do que pode conhecer qualquer outra coisa. O espírito conhece o “mundo externo” unicamente através das sensações e percepções que esse mundo externo lhe proporciona. Conseqüentemente, toda filosofia deve começar com o eu pensante individual. “Eu penso, logo sou” [Cogito, ergo sum].talvez houvesse algo do individualismo da Renascença neste ponto de partida; e o certo é que resultou numa cornucópia de conseqüências para ulteriores especulações.

A grande parada de epistemologia iria começar com Leibnitz, Locke, Berkeley, Hume e Kant, desfechando numa Guerra dos Cem Anos, que ao mesmo tempo estimulou e devastou a moderna filosofia.

Este lado do pensamento de Descartes não interessou Spinoza; ele não iria perder-se no labirinto da epistemologia [*Epistemologia significa, etimologicamente, a lógica [logos] da compreensão [episteme], isto é, a origem, natureza e valor do conhecimento]. O que o interessava no filosofo francês era a concepção de uma “substancia” homogênea em todas as formas de matéria e outra substancia homogênea em todas as formas de espírito; esta separação da realidade em duas substancias ultimas representava um desafio a paixão unificadora de Spinoza e agiu como semente fecunda sobre as acumulações do seu pensamento. O que o atraiu em Descartes foi também o desejo de submeter tudo no universo, exceto Deus e a alma, a lei mecânicas e matemáticas -  idéias que já vinham de Galileu e Leonardo, talvez como reflexo do desenvolvimento mecânico das cidades italianas. Dado o impulso inicial por Deus, dizia Descartes [repetindo Anaxágoras dois mil anos depois], tudo mais, na astronomia, na geologia e em todos os processos e desenvolvimentos não-mentais, pode ser explicado como partindo de uma substancia homogênea que existisse a principio sob forma desintegrada [a hipótese nebular de Laplace e Kant]; e todos os movimentos dos animais e do corpo humano se tornam movimento mecânico ou ação reflexa -  a circulação do sangue, por exemplo. Tudo no mundo e todos os corpos – é tudo maquina. Fora do mundo, porém, Deus; e dentro do corpo, a alma.

3]Excomunhão
Foram estes os antecedentes mentais do, na aparência calmo, mas internamente agitado moço que em 1656 [ele nascera em 1632] se viu intimado a comparecer perante os velhos da sinagoga para defender-se de heresias. Será certo que lhe perguntaram ser verdade que andava a propalar que o corpo de Deus era o mundo da matéria, que os anjos eram alucinações, que a alma não passava da vida e que o Velho Testamento nada dizia sobre a imortalidade?

Não podemos responder. Só sabemos que lhe foi oferecida uma unidade correspondente a 500 dólares em troca de manter-se, pelo menos na aparência, leal a sinagoga e a velha fé [*Graetz, History of the lews]. Spinoza recusou a oferta – e a 27 de julho de 1656 foi solenemente excomungado de acordo com o rito hebreu.

“Durante a leitura da excomunhão o gemer de uma grande tuba esmorecia a espaços, e as luzes, muito intensas no começo da cerimônia, iam-se extinguindo uma a uma até se apagarem todas – símbolo da extinção da vida espiritual no excomungado; por fim a congregação se retirava em trevas” [*Willis, Benedcit de Spinoza].

Van Vloten nos dá a formula usada nessa excomunhão:

Os chefes do Conselho Eclesiástico fazem publico que, já bem convencidos dos atos e opiniões erradas de Baruch Spinoza, procuraram por todos os meios e com varias promessas desvia-lo do mau caminho. Mas não conseguiram fazê-lo mudar de idéia; ao contrário, como se acham cada vez mais certos das horríveis heresias publicamente por ele confessadas, e diante da insolência com que tais heresias são difundidas, do que eram testemunho muitas pessoas de credito na presença do próprio dito Spinoza, ele as aceita como provadas. Feito o estudo da matéria pelo Conselho Eclesiástico, o mesmo resolve, como resolvido tem, que o dito Spinoza seja anatematizado e desligado do povo de Israel, e que a partir deste momento seja colocado em anátema com a seguinte maldição:
_Com assentimento dos anjos e santos nós anatematizamos, execramos, amaldiçoamos e expulsamos Baruch de Spinoza, com audiência da comunidade sagrada, em presença dos sagrados livros onde os seiscentos e treze preceitos estão escritos, pronunciando contra ele a maldição com que Elisha amaldiçoou os filhos e mais todas as maldições do Livro da Lei. Amaldiçoado seja de dia e amaldiçoado seja de noite; dormindo e acordado, indo e vindo. O Senhor que nunca o perdoe ou o receba; e que a ira do Senhor não cesse contra este homem e o carregue e todas as maldições do Livro da Lei e apague seu nome debaixo do céu e o afaste de todas as tribos de Israel, sobrecarregado com todas as maldições contidas no Livro da Lei – e possam todos que são obedientes ao Senhor ser salvo neste dia.
Por esta advertimos a todos que ninguém com ele deve ter contato por gesto ou palavra, nem por escrito; ninguém lhe deve prestar assistência, nem permanecer no mesmo teto que o abrigar, nem se aproximar dentro da distancia de quatro cúbitos, nem ler nada por ele citado ou escrito por sua mão.

Não sejamos precipitados em julgar os chefes da sinagoga; eles enfrentavam uma situação muito delicada. Certo que haviam de ter hesitado em agir tão intolerantes como a Inquisição que os expulsara da Espanha. Mas a gratidão dos judeus pela Holanda que os recebera exigia a excomunhão de um homem cujas duvidas vinham ferir em ponto vital o Cristianismo, tanto quanto o Judaísmo. O Protestantismo não era naquele tempo a filosofia liberal de hoje; as guerras de religião haviam arrastado ambos os partidos a se entrincheirarem ferozmente dentro dos respectivos credos, mais caros agora em conseqüência do sangue derramado. Que diriam as autoridades holandesas de uma comunidade judaica que lhes pagava a tolerância e a proteção produzindo na mesma época um Costa e um Spinoza? Além disso, a unanimidade religiosa parecia aos velhos o único meio de preservar o pequeno grupo judeu de Amsterdam, com uma unidade que mantivesse a sobrevivência judaica no mundo. Se eles estivessem em seu próprio país, sob leis próprias e com força habilitada a manter a coesão interna e o respeito externo, poderiam mostrar-se mais tolerantes; mas sua religião era o seu patriotismo e sua fé;  a sinagoga, o centro da vida social e política; e a Bíblia, cuja veracidade Spinoza impugnava, a verdadeira “pátria portátil” da raça dispersa. Natural que sob tais circunstancias considerassem a heresia como traição e a tolerância como suicídio.

Preferíamos talvez que eles arrostassem os riscos; mas é perigoso julgar fora do quadro do momento. Talvez Menasseh Bem Israel, chefe espiritual dos judeus de Amsterdam, pudesse encontrar alguma formula conciliatória dentro da qual a sinagoga e o filosofo coexistissem em paz; mas por esse tempo estava o grande rabino em Londres, convencendo Cromwell a abrir as portas da Inglaterra aos judeus. Os fados conspiravam para que Spinoza não pertencesse a um clan – e sim ao mundo.

4] Retiro e Morte
Spinoza recebeu a excomunhão com serena coragem, dizendo: “Não me compele a nada”. Mas isto era assobiar no escuro; na verdade o jovem estudante se viu amarga e dolorosamente só. Nada mais horrível do que a solidão; e poucas formas de solidão piores que o isolamento de um judeu no seu povo. Spinoza já havia sofrido com a perda da velha fé; arrancar do espírito aquelas raízes fora operação dolorosa que deixara fundos sinais. Se houvesse penetrado em outro grupo, abraçado alguma ortodoxia das que reúnem os homens como carneiros em busca do calor, poderia encontrar na situação de converso eminente algo do que perdera com a expulsão do clan. Mas Spinoza preferiu viver sozinho. Seu pai, que o olhara com a esperança da família, mandou-o embora de casa; sua irmã procurou lesá-lo de uma pequena herança [*Spinoza levou o caso aos tribunais; depois de ganhar a demanda desistiu da herança em favor da irmã]; seus amigos passaram a evitá-lo. Não admira que haja tão pouco humor em suas obras, como não admira que as vezes transpareça o seu amargor contra os Guardiões da Lei.

Os que desejam achar a causa dos milagres, e estudam as coisas da natureza como filósofos, em vez de se deslumbrarem diante delas como metecaptos, breve são tidos como ímpios e heréticos e como tais proclamados pelos que as massas adoram como interpretes da natureza e dos deuses. Porque estes homens sabem que quando a ignorância é posta de lado, cessa o deslumbramento -  único meio pelo qual sua autoridade é mantida [*Ética].

A experiência culminante veio logo depois da excomunhão. Certa noite ia ele pela rua quando um piedoso facínora lhe deu uma demonstração de sua teologia de faca em punho. Spinoza desviou-se rápido e escapou com um leve ferimento no pescoço. Concluiu que há pouca segurança no mundo para um filosofo e foi viver no calmo sótão de uma casa da estrada de Outerdek, perto de Amsterdam. Foi provavelmente nessa época que mudou o nome de Baruch para Benedito. Seus hospedeiros eram cristãos da seita menonita, e talvez por esse motivo puderam compreender o herético. Simpatizaram-se com o seu rosto triste [os que muito sofrem, em vez de amargos, fazem-se meigos], e ficavam deleitados quando ocasionalmente ele vinha a noite fumar cachimbo na sala, nivelando o seu espírito com o daquela boa gente. Spinoza começou a ganhar a vida no ensino de meninos na escola Van den Ende, e depois deu-se ao trabalho de polir lentes, como levado pela inclinação de lidar com material refrator. Havia aprendido a ótica durante sua vida entre os judeus, cuja tradição manda que cada estudante seja treinado em qualquer oficio manual não somente porque o estudo ou o professorado honesto raro permite ganhar a vida, como também pelo que disse Gamaliel: “Os homens instruídos que não adquirem um oficio acabam transformados em patifes”.

Cinco anos depois [1660] o hospedeiro mudou-se para Rhynsburg, perto de Leyden -  e Spinoza foi também. A casa que ocupou ainda existe, na rua que tem hoje seu nome. Foram anos de altas locubrações. Muitas vezes ficou em seu quarto dois ou três dias sem sair, não vendo a ninguém e com as modestas refeições lá mesmo tomadas. O trabalho de polimento dava-se estritamente para viver; Spinoza amava de mais a sabedoria para tornar-se um “homem bem sucedido”. Colerus, que o conheceu nessa casa, e com base no depoimento dos que com ele trataram pessoalmente escreveu breve historia de sua vida, diz: “Era muito cuidadoso em suas contas, que pagava de quatro em quatro meses, não despendendo nem mais nem menos do que podia despender anualmente. Costumava dizer as pessoas da casa que era como a serpente que forma um circulo reunindo a cauda a boca – para indicar que nada lhe ficava no fim do ano”. Mas vivia feliz na sua modéstia. A alguém que o aconselhou a confiar na revelação em vez de na razão, respondeu:”Ainda que não me venham os frutos que com a minha natural compreensão procuro, nem por isso fico menos contente; porque, perseguindo-os, sou feliz e passo meus dias na serenidade e na alegria, em vez de passá-los suspirando na tristeza”. “Se Napoleão tivesse a inteligência de Spinoza”, diz um grande sábio, “teria vivido em um sótão e escrito quatro livros” [*Anatole France:Mr Bergeret em Paris].

Aos retratos de Spinoza que chegaram até nós temos a acrescentar alguns traços de Colerus. “Era de mediana estatura. Feições regulares, pele um tanto morena, cabelos pretos e crespos, sobrancelhas negras e bastas, denunciando claramente a descendência de judeus portugueses. No trajar, muito descuidado, a ponto de quase confundir-se com os cidadãos da mais baixa classe. Um conselheiro de estado que veio vê-lo, encontrou-o em trajes bastante sórdidos; censurou-o por isso e ofereceu-lhe roupas novas. Spinoza retrucou que um homem não melhora com usar belas roupas, e acrescentou: “Não é razoável envolver o que nada vale em envoltório precioso” [*Pollok:Life and Philosophy of Spinoza]. A sua filosofia sartorial, entretanto, não era ascética. “Não é o desarranjo e o sórdido externo que nos faz sábios”, escreveu, porque o afetado desleixo pelo aspecto externo evidencia uma pobreza de espírito na qual a verdadeira sabedoria não pode encontrar abrigo”.

Foi durante os cinco anos passados em Rhynsburg que escreveu o pequeno ensaio sobre o Melhoramento do Intelecto [De Intellectus Emendatione], e a Etica Demonstrada Geometricamente [Ethica More Geométrico Demonstrata]. Esta ultima obra foi concluída em 1665; mas pode dez anos nenhuma tentativa fez para publicá-la. Em 1668 Adriano Koerbagh viu-se condenado a dez anos de prisão por ter impresso opiniões similares as de Spinoza – e morreu após dezoito meses de cárcere. Quando em 1675 Spinoza foi a Amsterdam “espalhou-se o rumor”, escreveu ele a seu amigo Oldenburg, “de que um livro meu ia aparecer para provar que Deus não existe. Esta noticia, pesa-me dizê-lo, foi por muita gente aceita como verdadeira. Certos teólogos [os autores prováveis do boato] aproveitaram-se para dar queixa contra mim. E havendo eu recebido de alguns amigos fieis, os quais também me asseguraram que os teólogos não desistiam de me por a mão em cima, determinei adiar a publicação do livro para melhor oportunidade”.

Somente depois da morte de Spinoza apareceu a Etica [1677], juntamente com um inconcluso tratado sobre a política [Tractatus Politicus] e o Tratado do Arco-Iris. Todas estas obras foram escritas em latim, porque era o latim então a língua universal da filosofia e da ciência. Um Breve Tratado sobre Deus e o Homem, escrito em holandês, foi descoberto por Van Vloten em 1852; aparentemente um esboço da Ética. Os únicos livros que publicou em vida foram Os Princípios da Filosofia Cartesiana [1663] e o Tratado Sobre a Religião e o Estado [Tractatus Theologico-Politicus], que apareceu anônimo em 1670. Imediatamente foi esta obra distinguida com a inclusão no Index Expurgatorius, tendo o curso vedado pelas autoridades civis; graças a essa assistência teve considerável circulação secreta, disfarçada como livro de medicina ou história. Incontáveis livros foram escritos para refutá-la; um deles considerava Spinoza “o pior ateu que ainda existiu sobre a face da terra”; Colerus fala de uma refutação como sendo um “tesouro de infinito valor que jamais perecerá” [*Pollok] – mas esta referencia é o único vestígio que resta de tal tesouro. Além desses castigos públicos Spinoza recebeu numerosas cartas que pretendiam convertê-lo; a de um seu amigo discípulo, Albert Burgh, que se passara para o catolicismo, merece ser citada como exemplo.

* V.declara que afinal encontrou a verdadeira filosofia. Mas como sabe que a sua filosofia é melhor que todas que já foram ensinadas no mundo e o são agora e serão no futuro? Deixando de parte o futuro, já examinou V. todas as filosofias antigas e modernas, professadas aqui, na Índia e no mundo inteiro? E supondo que as examinasse todas, como sabe que escolheu a melhor? Como se atreve a pôr-se acima dos patriarcas, profetas, apóstolos, mártires, doutores e professores da Igreja? Miserável comida de vermes, como pode enfrentar a eterna sabedoria com essas inomináveis blasfêmias? Que fundamento tem a sua deplorável e maldita doutrina? Que diabólico orgulho o enche, para dar opinião sobre mistérios que os próprios católicos declaram incompreensíveis?

Ao que Spinoza respondeu:

*Você, que declara ter afinal encontrado a melhor religião, ou, antes, os melhores mestres nos quais firmar a credulidade, como sabe que são os melhores de quantos já tem ensinado a religião, ou a ensinam, ou a ensinarão no futuro? Já examinou V. todas as religiões, antigas e modernas, professadas aqui, na Índia e em todo o mundo? E supondo que devidamente as examinasse, como sabe que escolheu a melhor?

O suave filosofo sabia reagir quando queria.

Mas todas as cartas recebidas não eram assim. Muitas provinham de homens cultos e colocados em altas posições. Os correspondentes mais dignos de nota foram Henry Oldenburg, secretario da recém fundada Royal Society of England; Von Tschirnhaus, um jovem alemão, nobre e inventor; Huygnes, cientista holandês; Leibnitz, que o visitou em 1676; Louis Meyer, medico de Haia e Simon De Vries, rico mercador de Amsterdam. Esta ultimo admirava-o tanto que lhe pediu para aceitar um donativo correspondente a mil dólares. O filosofo recusou; mais tarde, ao fazer o testamento, quis deixar para Spinoza toda sua fortuna – mas o filosofo o dissuadiu, insistindo para que as riquezas passassem a um irmão de De Vries. Quando esse mercador morreu deixou uma anuidade correspondente a 250 dólares para ser paga ao filosofo, o qual recusou de novo dizendo: ”A natureza contenta-se com pouco – e não posso ser mais exigente que ela”; por fim, insistido, aceitou parte da renda – 150 dólares.

Outro amigo, Jan De Witt, magistrado da republica holandesa, dotou-o com uma anuidade correspondente a 50 dólares. O próprio Luiz XIV, finalmente lhe ofereceu larga pensão sob clausula de que lhe dedicaria o seu próximo livro. Delicadamente o filosofo recusou.

Para agradar amigos e correspondentes, Spinoza mudou-se em 1665 para Voorburg, subúrbio de Haia; e em 1670, para a própria Haia. Durante estes últimos anos ligou-se intimamente a De Witt, e quando De Witt e seu irmão foram brutalmente mortos na rua pela populaça, como o responsável da derrota das tropas holandesas pelas francesas em 1672, Spinoza rompeu em lagrimas e só compelido pela força deixou de repetir o gesto de Antonio, indo denunciar o crime no local em que fora cometido. Não muito depois o príncipe de Conde, na chefia do exercito francês invasor da Holanda, convidou-o a comparecer ao seu quartel general para receber uma pensão do rei da França e ser apresentado a vários admiradores. Spinoza, que era mais um “bom europeu” do que um holandês, não pôs objeção em aceitar o convite. Quando tornou para Haia, a noticia dessa visita já se tinha espalhado. Spinoza estava hospedado com Van den Spyck, o qual mostrou receio de ver sua casa assaltada. Spinoza acalmou-o dizendo: ”Posso facilmente livrar-me da pecha de traição; mas se o povo mostrar o menor intuito de molestar-me, ou atacar a casa, irei ao seu encontro embora me façam a mim o que fizeram a De Witt” [*Willis]. Quando o povo soube que Spinoza não passava de um filosofo, convenceu-se de que tratava de um ser inofensivo – e acalmou-se.

A vida de Spinoza, como vemos desses incidentes, não era tão reclusa e miserável como habitualmente se pensa. Vivia em segurança econômica, possuía amigos influentes, tomava interesse  na política e metera-se em aventuras que quase lhe custaram a vida. Que tivesse aberto o seu caminho apesar da excomunhão, e conquistado o respeito dos contemporâneos, é fato que se conclui da oferta que lhe foi feita em 1673 de uma cadeira na Universidade de Heidelberg; oferta em termos dos mais honrosos e promissores:”a mais completa liberdade de pensamento, que Sua Alteza está certa não será abusada para combalir a religião estabelecida e o estado”. Spinoza respondeu de um modo característico:

Honrado Senhor: Tivesse sido meu desejo professar numa faculdade e esse desejo seria agora amplamente satisfeito com a aceitação do lugar que Sua Alteza Sereníssima, o Príncipe Palatino, me deu a honra de oferecer, com a nota muito valiosa aos meus olhos de liberdade de palavra. Mas não sei que preciosos limites essa liberdade de filosofar possa ter de modo a não interferir com a religião estabelecida e o estado...Vêde, pois, honrado senhor, que não olho para posição mais alta que a de que gozo; e que por amor a paz, que de outro modo não estou certo de conseguir; tenho de abster-me de penetrar no professorado público.

O derradeiro capitulo fechou-se em 1677. Spinoza estava apenas com quarenta e quatro anos de idade e seus amigos sabiam que chegara ao fim. Provinha de ascendentes tuberculosos; e o confinamento em que vivera bem como a atmosfera poenta em que trabalhara não eram de molde a contrabater as desvantagens herdadas. Sua respiração tornava-se cada vez mais difícil; os pulmões esvaiam-se reconciliou-se com o fim prematuro, apenas receando que o livro, ao qual consagrara a vida e que não pudera publicar, fosse perdido ou destruído um dia. Fechou o manuscrito numa escrivaninha e deu a chave ao seu hospedador, pedindo-lhe que a entregasse depois de sua morte a Jan Rieuwertz, editor de Amsterdam.

Num domingo, 20 de fevereiro, a família em cuja casa morava foi a igreja, nada vendo de grave no estado do hospede. Ficara com ele o dr. Meyer. Quando voltaram, estava o filosofo já morto, nos braços desse amigo. Muita gente lhe guardou o corpo, porque os simples o amavam pela sua suavidade, como os cultos o amavam pela sua sabedoria. Filósofos e magistrados vieram tomar parte no acompanhamento a morada derradeira – e homens de vários credos encontraram-se ao pé do tumulo.

Nietzsche diz em qualquer parte que o ultimo cristão morrera na Cruz. Tinha-se esquecido de Spinoza.