31 de mar. de 2011

Spinoza_A Natureza de Deus

A primeira pagina nos mergulha no maelstrom da metafísica. Nossa moderna repugnância da metafísica nos empolga e por momentos passamos a querer estar em qualquer parte, menos em Spinoza. Mas aqui a metafísica, como diz William James, nada mais é do que um esforço para pensar claramente sobre a essência substancial das coisas, e assim unificar a verdade e alcançar esse “ápice de todas as generalizações” que ainda para os práticos filósofos ingleses [*Spencer, First Principles, Parte II, cap.I] constitui a filosofia. A própria ciência, que tanto mofa da metafísica, faz certa metafísica em cada uma das suas proposições. Esta metafísica da ciência é de Spinoza.

Há três  que são pivôs no sistema de Spinoza; substancia, atributo e modo. Por amor a simplificação poremos de lado temporariamente o Atributo. Modo é qualquer coisa ou fato individual, qualquer forma particular que passageiramente a realidade assume; o leitor, o corpo do leitor, os pensamentos do leitor, o grupo, a espécie, o planeta do leitor são modos; tudo isto são formas, modos e quase literalmente modas de alguma eterna e invariável realidade que permanece atrás.

Que realidade escondida é esta? Spinoza chama-lhe substancia, ou literalmente, o que está debaixo. Oito gerações lutaram volumosas batalhas livrescas para esclarecer a significação deste termo – não seremos condenados, pois, de o não esclarecermos num parágrafo. De um erro devemos nos guardar: substancia não significa o material constituinte de qualquer coisa, como quando digo que a madeira é a substancia de uma mesa. Aproximamo-nos mais da acepção que Spinoza dá ao tempo quando dizemos a “substancia de suas observações”. Se vamos na peugada dos filósofos aos quais tomou ele a palavra, veremos que a usaram como tradução do grego ousia, particípio presente de eimai, ser, indicando a coisa intima, a essência. Substancia, então, é o que é [Spinoza não esqueceu o impressivo “Eu sou o que é” do Gênesis]; o que eterna e imutavelmente é e do qual tudo mais não passa de formas ou modos transiantes. Se comparamos agora esta divisão do mundo em substancia e modos, com a sua divisão, no aperfeiçoamento do Intelecto, em ordem de leis eternas e de invariáveis relações, de um lado, e ordem temporal de coisas perecíveis, de outro, seremos impelidos a conclusão de que aqui Spinoza significa como substancia algo muito próximo do que lá significa como ordem eterna.

Mais adiante o filosofo identifica substancia com a natureza e com Deus. A maneira dos escolásticos, concebe a natureza sob duplo aspecto, como um processo vital e ativo, a que chama natura naturans, natureza naturante [o élan e a evolução criadora de Bérgson]; e como o produto passivo deste processo, natura naturata – natureza criada, o material e conteúdo da natureza – as arvores e ventos e águas, as montanhas ou campos e miríades de formas externas. É nesse ultimo sentido que nega e naquele primeiro que afirma, a identidade entre a natureza e Deus. Substancia e modos, a ordem eterna e a ordem temporal, a natureza ativa e a natureza passiva, Deus e o mundo, são para Spinoza termos coincidentes, ou dicotomias sinônimas; todos dividem o mundo em essência e incidente. Que a substancia é insubstancial, que é forma e não matéria, que nada tem que ver com essa mestiçagem compósita de matéria e pensamento que alguns de seus interpretes imaginaram, ressalta com clareza desta identificação da substancia com o criativo, mas não com o passivo ou a natureza material. Uma passagem na sua correspondência nos esclarece o ponto.

* Tenho uma vista de Deus e da Natureza totalmente diversa da que os cristãos em regra propõem, porque afirmo que Deus é a causa imanente de todas as coisas e não causa externa. Digo: Tudo está em Deus; tudo vive e move-se em Deus. E isto mantenho com o apostolo Paulo e talvez com cada um dos filósofos da antiguidade, embora de maneira diversa. Poderei ainda aventurar-me a dizer que minhas vistas são as mesmas dos velhos hebreus, como pode ser inferido de certas tradições por mais alteradas e falsificadas que tenham sido. Constitui, porém, erro completo dizer-se que meu propósito...é mostrar que Deus e Natureza [por este ultimo termo entendendo-se uma certa massa de matéria corpórea]são uma e a mesma coisa. Nunca tive tal intenção [* Epistola,21].

Igualmente no Tratado sobre a Religião e o Estado escreve ele: “Pela ajuda de Deus quero dizer pela fixa e imutável ordem da natureza, ou a cadeia dos acontecimentos naturais”, as leis universais e os decretos eternos de Deus são uma e a mesma coisa. “Todas as coisas...decorrem da infinita natureza de Deus pela mesma lei de necessidade e da mesma maneira como da natureza de um triangulo e por toda a eternidade decorre que seus três ângulos são iguais a dois ângulos retos”. O que para todos os círculos, são as leis do circulo, é Deus para o mundo. Como a substancia, Deus é a cadeia causal ou o processo [*Hoffding of Modern Philosophy]que sub-está a todas as coisas [*Martineau, Study of Spinoza], a lei da estrutura do mundo [*Prof.Woodbridge]. Este universo concreto de modos e coisas está para Deus como uma ponte está para sua planta, para sua estrutura e para as leis da matemática e da mecânica de acordo com as quais foi constituída; estas leis são a base que sustenta, a condição sub-estante, a substancia da ponte; sem elas nada se ergueria. E, como a ponte, o mundo é sustentado pela sua estrutura e suas leis; é mantido na mão de Deus.

A vontade de Deus e as leis da natureza, sendo uma e a mesma realidade diversamente fraseada, segue-se que todos os acontecimentos são o produto de invariáveis leis e não da veneta de um autocrata irresponsável entronizado lá nas estrelas. O mecanismo que Descartes viu unicamente no corpo e na matéria, Spinoza vê em Deus e no espírito. É um mundo de determinismo e desígnio. Porque agimos com fins conscientes, supomos que todos os processos tem tais fins em vista; e porque somos humanos, supomos que todos os acontecimentos miram o homem e sobrevêm para atender as suas necessidades. Mas isto é uma ilusão antropocêntrica, como muitas do nosso pensar. As raízes dos maiores erros em filosofia jazem na projeção dos nossos propósitos humanos, critérios e preferências sobre o universo objetivo. Daí o “problema do mal”; lutamos para conciliar os males da vida com a bondade de Deus, esquecidos da lição ensinada a Job, de que Deus está além do nosso bem e do nosso mal. Bom e mal são termos relativos aos fins e as predileções humanas, freqüentemente individuais, e nenhuma validez tem um universo em que o individuo é efêmero, e no qual um “Dedo Agente” ainda escreve nas águas a história da raça.

*Portanto, sempre que algo na natureza nos parece absurdo ou mal é porque só temos um conhecimento parcial das coisas, e ignoramos a ordem e a coerência da natureza como um todo, e porque queremos que tudo seja disposto de acordo com os ditados da nossa própria razão; mas o que a nossa razão considera mau não o é relativamente a ordem universal ou as leis da natureza, e apenas as leis da nossa própria natureza tomadas separadamente...Quanto aos temos ‘bom e mau’, nada indicam de positivo, considerados em si mesmos...Porque uma coisa pode ser ao mesmo tempo boa, má ou indiferente. A musica, por exemplo, é boa para os melancólicos, má para os anojados e indiferente para os mortos. [*Ética, IV]

Bom e mau são preconceitos que a realidade eterna não pode admitir; “o mundo ilustra a plena natureza do infinito e não meramente certos ideais do homem” [*Santayana, Introdução a Ética]. E o que se dá com o bom e o mau se dá com o belo e o feio; também são termos subjetivos e pessoais, que arremessados ao universo voltarão devolvidos ao remetente. “Quero prevenir-vos que não atribuo a natureza nem beleza, nem deformidade; nem ordem nem confusão. Unicamente em relação a nossa imaginativa podem as coisas ser consideradas como belas ou feias, bem ordenadas ou confusas” [*Epistola, 15]. “Por exemplo, se as impressões que os nervos recebem por meio dos olhos conduzem a saúde, os objetos que causaram essas impressões são considerados belos; em caso contrário são tidos como feios” [*Ética, I, app]. Nestas passagens Spinoza vai além de Platão, que considerava seus juízos estéticos como leis da criação e decretos eternos de Deus.

É Deus uma pessoa? Não no sentido humano da palavra. Spinoza nota a tendência popular de figurar Deus como pertencendo ao sexo masculino e nunca ao feminino [*Epistola, 58] e tem a galanteria de rejeitar uma concepção que reflete a subordinação da mulher ao homem. A um correspondente que objetou contra sua impessoal concepção da Deidade, respondeu em termos relembrativos do velho Xenofanes:

*Quando V. diz que se não dou a Deus a faculdade de ver, ouvir, observar, querer e as demais...e V. fica sem saber que espécie de Deus é o meu, conjeturo que para V. não existe perfeição que as constituídas por essas faculdades. Não me admiro disso; se um triangulo pudesse falar e raciocinar, fariam igualmente um Deus triangular, e um circulo o faria circular – todos transfeririam para Deus os seus próprios atributos.

Finalmente,”nem intelecto, nem vontade cabem na natureza de Deus”, no sentido usual em que são estas qualidades humanas atribuídas a Deidade; mas a vontade de Deus é a soma de todas as causas de leis, e o intelecto de Deus é a soma de todo o espírito. “O espírito de Deus”, como Spinoza o concebe, “é a mentalidade difusa no espaço e no tempo, a consciência que anima o mundo”. “Todas as coisas, embora em graus diversos, são animadas”. Vida, ou espírito, é uma fase, ou aspecto de tudo que conhecemos; como extensão material, ou corpo é outra; são as duas fases [ou atributos, chama-lhe Spinoza] através das quais percebemos a operação da substancia, ou Deus; neste sentido Deus – o processo universal e a realidade eterna atrás do fluxo das coisas – pode ser concebido como tendo corpo e espírito. Nem a matéria, nem o espírito é Deus; mas o processo mental e o processo molecular que constituem a historia dupla do universoisto e suas causas e suas leis são Deus.