18 de abr. de 2011

Voltaire_Ferney: Candide

Lês Délices fora uma residência temporária, um centro donde Voltaire pudesse descobrir um abrigo para mais duradoura permanencia. Encontrou-o em 1758 em Ferney, na Suíça, rente à linha divisória com a França; achava-se ali a salvo do governo francês e, igualmente, bem perto da França, para o caso de procurar molestá-lo o governo suíço. Esta ultima mudança rematou seu Wanderjahre. Suas idas irrequietas para um e outro lugar não refletiram mera agitação nervosa; refletiram igualmente seu sentimento de insegurança em caso da perseguição que de toda a parte receava; só aos sessenta e quatro anos foi viver em casa que seria também lar.

Há uma passagem no fim de uma de suas novelas “Viagens de Scarmentado” que quase se aplica a seu autor: “Depois que vi tudo o que existia de raro ou de belo na terra, resolvi não mais ver, pra o futuro, outra coisa a não seu meu próprio lar; casei e logo suspeitei de que ela me enganava; não obstante essa duvida, achei ainda que, de todas as condições da vida, era essa muito mais feliz”. Voltaire não tinha esposa, mas tinha uma sobrinha – o que é bem melhor para um homem de gênio. “Nunca o ouvimos dizer que desejaria viver em Paris...Não há duvida de que este bem-aventurado exílio lhe prolongou a vida” [*Morley,239].

Sentia-se feliz em seu pomar, plantando arvores que não esperava ver com flores. Quando um admirador lhe louvou o trabalho que fizera em beneficio dos posteros, respondeu: “É verdade, plantei 4.000 árvores”. Tinha palavras amáveis para todos, mais podia, se a isso o obrigassem, usar linguagem bem ferina. Um dia perguntou a um seu visitante donde vinha. “Da casa do Sr. Haller”. “Ele é um grande homem”, disse Voltaire; “grande poeta, grande naturalista, grande filosofo e quase um gênio enciclopédico”. “Admira-me que diga isso, pois o Sr Haller não lhe faz a mesma justiça”. “Oh!” disse Voltaire, “é possível que nós dois estejamos enganados” [*Tallentyre,349].

Ferney tornou-se então a capital intelectual do mundo; todos os doutos ou governantes esclarecidos faziam-lhe a corte, quer pessoalmente, quer por correspondência. Concorriam padres céticos, fidalgos liberais e damas eruditas; lá foram ter Gibbon e Boswel, da Inglaterra; d’Alembert, Helvécio e os outros rebeldes do Enciclopedismo; e inúmeros outros. Afinal, a hospedagem daquela infindável caudal de visitantes tornando-se mui dispendiosa, mesmo para Voltaire, queixou-se ele de estar-se transformando no hoteleiro da Europa. A um conhecido que o avisou de que ia lá passar seis semanas, disse: “Sabe qual a diferença entre o senhor e Dom Quixote? D.Quixote julgava que as estalagens fossem castelos e o senhor toma meu castelo por uma estalagem”. “Deus me livre dos amigos”, conclui ele, “que dos inimigos me livrarei eu”.

Acrescente-se a esta incessante hospedagem a maior e mais brilhante correspondência que o mundo haja conhecido. Chegavam-lhe cartas de homens de todas as espécies e categorias; um burgomestre escreveu-lhe da Alemanha perguntando-lhe “confidencialmente se Deus existia ou não” e rogando a Voltaire que lhe respondesse pela volta do correio [*Morley, 335]; Gustavo III da Suécia arroubava-se com a idéia de que Voltaire as vezes  olhava para o norte e disse que era este seu Maximo incitamento para governar o melhor possível seu país; Cristiano VII, da Dinamarca, pedia-lhe desculpas por não fazer imediatamente todas as reformas necessárias; Catarina II da Rússia mandou-lhe belos presentes e escrevia-lhe com freqüência, pedindo-lhe que a não considerasse importuna. O próprio Frederico, após um ano de amuo, voltou ao redil, reatando a correspondência com o sol de Ferney.

*”O senhor fez-me graves ofensas”, escreveu ele. “Já as perdoei todas e quero mesmo esquecê-las.Mas se o caso fosse com outro, que não prezasse loucamente seu nobre gênio, não se teria saído tão bem de apuros...Gosta de ouvir amenidades? Pois bem! Dir-lhe-ei que o considero o maior gênio que os séculos tenham produzido; admiro sua poesia, amo sua prosa...Nunca escritor algum revelou tão fino tato, gosto tão seguro e apurado. Sua conversação encanta; diverte e instrui ao mesmo tempo. Jamais conheci pessoa tão sedutora, capaz de fazer-se amar por aqueles que quiser. Seu espírito tem tais amavios, que pode a um tempo ferir e merecer indulgência dos que o conhecem. Em suma, Voltaire seria perfeito se não fosse um homem [*Em Saint-Beuve, I, 221].

Quem poderia esperar que um homem tão jovial se tornasse o expoente do pessimismo? Em moço, quando se divertia nos salões de Paris, conhecera, apesar da bastilha, o lado mais ensolado da existência; mesmo assim, nesses tempos despreocupados, se revoltara contra o otimismo antinatural a que Leibnitz dera voga. A um ardente moço que publicara um trabalho atacando-o e a sustentar com Liebnitz que este é o “melhor de todos os mundos possíveis”, Voltaire escreveu:”Tive, senhor, a satisfação de saber que escreveu um livrinho contra mim. Fez-me com isso grande honra...Se explicar, em prosa e verso ou de outra maneira, por que tantos homens se cortam mutuamente os pescoços no melhor de todos os mundos possíveis, ficar-lhe-ei extremamente grato. Aguardo seus argumentos, seus versos e seus doestos; e afianço-lhe, com a máxima sinceridade, que nenhum de nós dois sabe coisa alguma sobre essa matéria. Tenho a honra de ser”, etc.

As perseguições e os desenganos abalaram-lhe a fé na vida, e o que se passara em Berlim e Franckfur golpearam-lhe fundo a esperança. Mas tanto a fé como a esperança sofreram mais quando, em novembro de 1755, chegaram as noticias do tremendo terremoto de Lisboa, em que morreram 30.000 pessoas. O cataclismo ocorrera no dia de Todos os Santos; as igrejas regorgitavam de fieis; e, encontrando seus inimigos em formação cerrada, a morte teve rica seara a ceifar. Voltaire sentiu-se profundamente impressionado e irritou-se ao saber que o clero francês explicava a catástrofe como punição dos pecados do povo lisbonense. Expandiu-se então em ardente poema no qual deu vigoroso realce ao antigo dilema: Ou Deus podia evitar o mal  e não o quis, ou quis evitá-lo e não o pode. Não lhe satisfazia a resposta de Spinoza, de que o bem e o mal são termos humanos, inaplicáveis ao universo, e de que todas as nossas tragédias são coisas insignificantes em confronto com a eternidade.

*Sou ínfima parte do grande todo; mas todos os animais condenados a viver, todas as coisas sensíveis nascidas sob a mesma severa lei, sofrem como eu e, como eu, morrerão também. O abutre empolga a tímida presa e crava-lhe o bico ensangüentado no corpo tremulo; parece que tudo corre bem. Mas sem demora a águia faz o abutre em tassalhos; a águia é trespassada pelas flechas do homem; e o homem, estirado no pó dos campos de batalha, misturando seu sangue ao de outros moribundos seus irmãos torna-se por seu turno o pasto das aves de rapina. E desta forma no mundo inteiro gemem de dor todos os seres, pois nasceram para os tormentos e para se entrematarem. E neste espantoso caos direis ainda que o mal de cada um concorre para o bem de todos! Queinsensatez! E quando com vozes tremulas, mortais e lastimosas gritais: “Tudo está bem”, o universo vos desmente e vosso coração refuta cem vezes essa convicção...Qual a conclusão dos espíritos mais compreensíveis? O silencio: o livro do destino está fechado para nós. O homem é um enigma para sua próprias  pesquisas; ignora donde vem e para onde vai. São átomos torturados num recipiente de barro, ludibrio dos fados devorados afinal pela morte; mas átomos pensantes; cujos olhos longevidentes, guiados pelo pensamento, mediram as pálidas estrelas distantes. Nosso ser se mescla com o infinito; e jamais chegaremos a ver-nos ou conhecer-nos. Neste mundo, neste teatro do orgulho e do mal, enxameiam tolos que falam em felicidade...

Há tempos já cantei em toada menos lúgubre as estradas soalheiras da felicidade; mudaram-se, porém, os tempos e, ensinado pelos anos crescentes e compartindo da fragilidade humana, eu a buscar uma luz em meio as sombras que se espessam, só poderei sofrer, mas sofrerei sem me queixar. [*Obras Escolhidas de Voltaire, Londres, 1911, págs. 3-5].   

Poucos meses depois rebentou a guerra dos Sete Anos: Voltaire considerou loucura ou suicídio o arrasamento da Europa com o fim de se determinar se seria a Inglaterra ou a França que ganharia “umas poucas leiras de neve” no Canadá. Quando mais acesa ia a luta, saiu a lume uma replica de Jean-Jacques Rousseau ao poema sobre Lisboa. Era a si mesmo que o homem deveria culpar pelo desastre, dizia Rousseau; se vivêssemos nos campos e não em cidades, não haveria mortos em tão grande escala; se vivêssemos ao ar livre e não em casas, as casas não desabariam sobre nós. Voltaire assombrou-se com a popularidade granjeada por essa “profunda” teodiceia; enraivecido de ver seu nome exovalhado por um tal Quixote, voltou contra Rousseau “a mais terrível de todas as armas intelectuais que hajam sido brandidas por algum homem – o sarcasmo de Voltaire [*Tallentyre, 231]. Em três dias, em 1751, escreveu o Candide.

Nunca foi o pessimismo provado com argumentação tão jovial, nem homem algum riu com mais gosto ao apregoar ser este um mundo de sofrimentos. E raro foi alguma historia contada com arte mais singela e velada; é pura narrativa e dialogação; nenhuma descrição a afrouxa; e a ação é tumultuosamente rápida. “Na mão de Voltaire”, disse Anatole France, “a pena voa e ri ao mesmo tempo” [*Introdução de Candide, edição da Modern Library]. É talvez o romance mais belo de todas as literaturas.

Candide, conforme o diz seu nome, é um rapaz honesto e simples, filho do barão de Thunder-Tem-Trockh, da Westphalia, e discípulo do douto Pangloss.

*Pangloss era professor de metafísico-teologico-cosmonigologia...”É perfeitamente demonstrável”, disse ele: “que tudo foi feito necessariamente para melhor fim. Observe-se que o nariz foi feito para se usarem óculos...e as pernas visivelmente destinadas ao uso de meias...as pedras para se construírem castelos...e os porcos para que tenhamos carne de porco o ano inteiro. Conseqüentemente, os que asseveram que tudo está bem, dizem uma tolice; deveriam dizer que tudo está o melhor possível”.

Enquanto Pangloss discorre, o castelo é atacado pelo exercito búlgaro; Candide, feito prisioneiro, passa a ser soldado.

*Mandaram-no fazer meia volta para a direita e para a esquerda, tirar vareta, por vareta, apontar, fazer fogo, marchar...Resolvendo dar um passeio por um belo dia de primavera, pôs-se a andar, distanciando-se dali, convicto de ser privilegio da espécie humana, tanto quanto das espécies animais, utilizar-se das próprias pernas como lhe aprouvesse. Mal havia caminhado duas léguas foi alcançado por quatro heróis de seis pés de altura que o amarraram e o levaram a uma prisão. Perguntaram-lhe o que preferia: ser açoitado trinta e seis vezes por todo o regimento ou receber incontinenti duas balas na cabeça. Embalde protestou ele ser livre a vontade humana e que por isso não escolhia nem uma nem outra. Forçaram-no a optar; e Candide resolveu, em virtude do dom divino chamado liberdade, ser passado trinta e seis vezes pelas varas do regimento. Agüentou duas [*Introdução de Candide, edição da Modern Library]

Candide foge, embarca para Lisboa e encontra a bordo o professor Pangloss, que lhe conta como o barão e a baronesa foram mortos e o castelo destruído. “Tudo isso”, concluiu ele, “era indispensável, pois as desgraças particulares concorrem para o bem geral, de forma que quanto mais desgraças particulares houver maior será esse bem geral”. Chegaram a Lisboa na ocasião precisa em que ia dar-se o terremoto. Cessado o cataclisma, contaram-se mutuamente as aventuras e os sofrimentos; um velho criado que os ouve diz-lhes nada seres seus infortúnios comparados aos dele. “Estive cem vezes a pique de matar-me, mas eu amava a vida. Esta ridícula fraqueza é talvez um de nossos mais fatais característicos, pois há coisa mais absurda do que insistir em carregar um fardo de que nos podemos libertar?” Ou, como outro personagem o exprime: “Bem pesadas todas as coisas, acho a vida de um gondoleiro preferível a de um doge; creio que a diferença é tão pequena que não vale a pena examiná-la”.

Fugindo à Inquisição, Candide vai ter ao Paraguai; “lá os jesuítas são donos de tudo e o povo, de nada; é uma obra prima de razão e justiça”. Em certa colônia holandesa encontra um preto com uma só mão e uma só perna, vestido de trapos. “Quando trabalhamos nos engenhos de cana”, explica ele, “e a moenda nos apanha um dedo, cortam-nos a mão; se tentamos fugir, cortam-nos uma perna...A esse preço é que os senhores comem açúcar na Europa”. Candide obtêm facilmente muito ouro no interior inexplorado; regressa a costa e freta um navio para transportá-lo à França; mas o capitão faz-se de vela com o ouro, deixando-o a filosofar no cais. Com parte do pouco que lhe resta, Candide compra passagem num navio que se destina a Bordeus; a bordo trava conversação com Marinho, um velho sábio.

*”Acredita o senhor”, perguntou Candide, “os que os homens sempre se mataram uns aos outros como o fazem hoje, que sempre foram mentirosos, velhacos, traidores, ingratos, bandidos, idiotas, ladrões, patifes, glutões, beberrões, sovinas, invejosos, ambiciosos, sanguinários, caluniadores, devassos, fanáticos, hipócritas e parvos?
“Acredita o Senhor”, disse Martinho, “que o milhafre comeu pombos sempre que os pilhou?”
“Sem duvida”, respondeu Candide.
“Pois então”, torna Marinho, “se os milhafres tem sempre os mesmos instintos, por que havemos de julgar que os homens mudariam os seus?”
“Oh!” exclama Candide. “Há grande diferença, porque os homens tem a vontade livre...”
E assim discutindo chegaram a Bordeus. [*Candide, pág.104].

Não podemos acompanhar Candide pelo resto de suas aventuras, faceto comentário aos embaraços da teologia medieval e do otimismo leibnitziano. Após padecer os mais variados males entre várias espécies de homens, Candide estabelece-se na Turquia como agricultor; e a narrativa finda com um derradeiro dialogo entre o mestre o discípulo:

*Pangloss dizia-lhe as vezes:
“Há uma concatenação harmônica, nos acontecimentos deste melhor dos mundos possíveis, pois, se não o tivessem expulsado de um magnífico castelo...se a Inquisição não o tivesse agarrado, se não tivesse percorrido a pé toda a América...se não tivesse perdido todo aquele ouro... não estaria agora aqui a comer doce de cidra e pistache”.
“Tudo está muito bem”, respondia Candide “mas vamos cultivar nosso pomar”.

Voltaire_O Ensaio Sobre a Moral

Qual a causa do novo exílio? Foi ter publicado em Berlim “sua obra mais ambiciosa, mais volumosa, mais característica e arrojada” [*Morley,146]. O titulo não entrava em pouco na culpa: Ensaios sobre os costumes e o espírito das Nações e sobre os principais fatos históricos desde Carlos Magno até Luiz XIII. Ele começara-a em Cirey para Mme. Du Chatelet; estimulou-o a escrevê-la a desaprovação, por parte da Marquesa, domado por que se costuma escrever a historia.

É “um velho almanaque”, dissera ela. “Que importa a mim, francesa e que vivo em minha propriedade, saber que Egil sucedeu a Aquin, na Suécia, e que Othman era filho de Toghrul?” Li com prazer a historia dos gregos e romanos, que oferecia, para mim, alguns quadros atraentes. Mas nunca consegui terminar a leitura de alguma historia longa de nossas nações modernas. Mal posso ver ali mais que confusão; uma congerie de pequenos acontecimentos sem nexo ou seqüências e de mil batalhas que nada significam. Renunciei a um estudo que fatiga o espírito sem o esclarecer”.

Voltaire concordou; fez seu Ingênuo dizer: “A historia nada mais é do que um relato de crimes e infortúnios”; e iria escrever a Horace Walpole [15 de julho de 1768]: “Em verdade, a historia dos yorkistas e lancasterianos é bem semelhante a narrativa de proezas de salteadores de estrada”. Mas ele manifestara a Mme.du Chatelet sua esperança de que deveria haver meios de aplicar-se a filosofia à historia, tentando traçar, sob o fluxo dos sucessos políticos, a  historia do espírito humano. [*Robertson,23. Morley,215. Tallentyre, Voltaire nas Suas Cartas, Nova-York, 1919, pág.222].

“Somente os filósofos deveriam escrevê-la”, disse ele.[*Pellissier, 213]. “Em todas as nações a historia é desfigurada pela fabula, até que a filosofia venha esclarecer o homem; e quando ela chega, afinal, em meio a esta escuridão, encontra o espírito humano tão cego por séculos de erros que mal pode libertá-lo; encontra montanhas de cerimônias, fatos e monumentos para provarem mentiras” [*Ensaio sobre os Costumes, Introdução]. “A historia”, prossegue, “não é, afinal de contas outra coisa senão uma série de peças que pregamos aos mortos” [*Em Morley, 220]; transformamos o passado para afeiçoá-lo de acordo com os nossos desejos de futuro e, em ultima análise, “a historia prova que tudo pode ser provado com a história”.

Voltaire afanou-se como um mineiro para encontrar nesse “Mississipi de falsidades” [*Descrição histórica de Matthew Arnold] as palhetas da verdade sobre a verdadeira historia humana. Em anos sucessivos dedicou-se a estudos preparatórios: uma Historia da Rússia, uma Historia de Carlos XII, O Século de Luiz XIV, o Século de Luiz XIII; e por meio destes trabalhos desenvolveu em si aquela intransigente honestidade intelectual que escraviza um homem e o transforma em gênio. “O jesuíta Pére Daniel, que publicou uma Historia da França, espalhou a sua frente, na Biblioteca real de Paris, 1.200 volumes de documentos e manuscritos; passou uma hora, mais ou menos, a examiná-los; depois, voltando-se para Pére Tournemine, o antigo professor de Voltaire, fez retirar tudo aquilo declarando que era “imprestável papel velho que ele dispensava para escrever a historia“[*Brandes, François de Voltaire]. Não se deu o mesmo com Voltaire; lia tudo em que punha as mãos, se tivesse relações com o seu assunto; leu centenas de volumes de memórias; escreveu centenas de cartas aos sobreviventes de acontecimentos celebres; e mesmo depois de publicar suas obras continuava a estudar e a melhorar cada edição.

Mas este acumulo de materiais era simplesmente preparatório; o essencial era um novo método de seleção e concatenação. Meros fatos não seriam de proveito – mesmo que fossem, como raro sucede, fatos verdadeiros. “Pormenores que a nada conduzem são impedimento para a historia, como a bagagem para um exercito; precisamos ver as coisas em ampla perspectiva e isto porque o espírito humano é tão pequeno, que sossobra sob o volume das minúcias” [*Em Morley,275]. Os analistas devem coligir os “fatos” e ordená-los em uma espécie de dicionário histórico, onde os possamos achar quando precisarmos, assim como se acham as palavras.

O que Voltaire procurava era um principio unificador que pudesse servir de fio principal a toda a historia da civilização e convenceu-se de que esse fio era a historia da cultura. Deliberou que em sua historia não cogitaria de reis e sim de movimentos, forças e massas; não de nações, mas de espécie humana; não de guerras, mas da evolução do espírito. “As batalhas e as revoluções são partes mínimas do plano; esquadrões vitoriosos ou vencidos, cidades tomadas e retomadas, são comuns em toda a historia...Suprimi as artes e o progresso do espírito”, que em qualquer época “nada achareis de suficientemente notável para atrair a atenção dos posteros” [*Voltaire em Suas Cartas,40-41].”Quero escrever uma historia não de guerras, mas da sociedade; verificar como viviam os homens no seio de suas famílias e quais as artes que ordinariamente cultivavam...Meu intuito é a historia do espírito humano, não um mero minudenciar de fatos insignificantes; nem me interessa igualmente a historia dos grandes senhores...;mas desejo conhecer quais os fatos que, da barbárie, conduziram os homens à civilização” [*Em Buckle:Historia da Civilização, I, 580]. Este alijar os reis da historia constituía parte da avolumante onda democrática que por fim os alijou do governo; o Ensaio sobre os Costumes iniciou a derrubada dos Bourbons.

E desta forma criou Voltaire a primeira filosofia da historia – a primeira tentativa sistemática para rastrear as correntes da casualidade natural do evolver do espírito europeu; era de esperar que a tal experiência sucedesse o abandono das explicações sobre-naturais; a historia não poderia seguir seu próprio curso enquanto a teologia não o desobstruísse. Como diz Buckle, esse livro de Voltaire lançou as bases da ciência histórica moderna; Gibbon, Niebuhr, Buckle e Grote foram seus devedores e continuadores agradecidos; para todos Voltaire era o caput Nilii – e ainda não foi sobrepujado no terreno que foi o primeiro a explorar.

Mas por que seu melhor livro lhe acarretou o exílio? Para dizer a verdade, porque ofendia a todos. Enraiveceu principalmente o clero, adotando a opinião, mais tarde desenvolvida por Gibbon, de que a vitória rápida do cristianismo sobre o paganismo desintegrara intimamente Roma e a preparara para tornar-se fácil presa dos bárbaros invasores e imigrantes. Enraivou-os ainda por dar espaço menor que o costumado à Judéia e a cristandade, e por falar sobre a China, a Índia e a Pérsia com a imparcialidade de um marciano; com esta nova perspectiva desvendara-se um mundo vasto e diverso; todos os dogmas se esvaneciam, com coisas relativas o infinito Oriente assumia as proporções que a geografia lhe dá; e a Europa subitamente teve a noção de ser ela própria a experiência peninsular de um continente, de uma cultura maior que a sua. Como poderia um europeu perdoar-lhe tão impatriótica revelação?

E o rei decretou que aquele francês, que se atrevia a ver-se primeiro como homem e só depois como francês, jamais poderia por pé, novamente, no território da França.

Voltaire_Potsdam e Frederico

Os que não podiam ir vê-lo, escreviam-lhe. Em 1736 começou sua correspondência com Frederico, então príncipe e ainda não o Grande. A primeira carta de Frederico semelhava-se a de um menino a um rei; sua prodigalidade em lisonjas dá-nos mostra da fama que já tinha Voltaire – embora não houvesse ainda escrito  nenhuma de suas obras primas. Proclamavam-no “o maior homem da França e um mortal que faz honra a linhagem humana...Considero uma das maiores honras em minha vida ser contemporâneo de um homem de tão eminentes predicados como os seus... Não é dado a todos fazer o espírito rir”; e “que prazeres podem sobrepujar os do espírito?” [*Em Sainte-Beuve, I, 212-215].

Frederico era um livre-pensador que encarava os dogmas como um rei encara seus súditos; e Voltaire tinha grandes esperanças de que, subindo ao trono, esse monarca poria em voga o racionalismo, representando ele, tralvez, o papel de Platão do Dioniso prussiano. Quando Frederico protestou contra as lisonjas com que Voltaire respondia as dele, Voltaire respondeu: “Tão singular é um príncipe escrever contra lisonja como um papa contra a infalibilidade”.

Frederico mandou-lhe um exemplar do Anti-Machiavel, no qual o príncipe discorria com eloqüência sobre a iniqüidade na guerra e o régio dever de manter a paz; Voltaire verteu lagrimas de jubilo ao ler o real pacifista. Poucos meses depois, já coroado rei, Frederico invadiu a Silesia e alagou a Europa em sangue.

Em 1745, quando Voltaire se candidatou a Academia Francesa, o poeta e sua matemática regressaram a Paris. Para conseguir aquela honra perfeitamente supérflua ele declarou-se bom católico, homenageou alguns poderosos jesuítas, mentiu inexaurivelmente – procedeu, em suma, como a maioria dentre nós em casos tais. Foi mal sucedido; mas um ano depois teve bom êxito e proferiu um discurso de recepção que é uma das paginas clássicas da literatura francesa.

Durante algum tempo demorou-se em Paris, adejando de salão em salão e escrevendo peças após peças. Desde o  Édipo dos 18 anos, até Irene, dos 83, produziu longa série de dramas, dos quais alguns tiveram mau êxito e a maioria foi bem acolhida. Em 1730 Bruto foi um malogro e em 1732 Erifilo também; seus amigos instaram para que ele abandonasse o drama; entretanto, no mesmo ano fez representar Zaira, que se tornou o seu Maximo triunfo. Seguiram-se Mahomet em 1741, Merope, em 1743, Semiramis em 1748 e Tancredo em 1760.

Entrementes, tragédias e comedias invadiam-lhe a vida. Após quinze anos já seu amor por Mme du Chatelet arrefecera um tanto; haviam mesmo cessado de questionar. Em 1748 a Marquesa apaixonou-se por Saint-Lambert. Voltaire enfureceu-se; mas quando saint-Lambert lhe pediu perdão, desfez-se em benção. Chegara ao apogeu da vida e começava a divisar a morte ao longe; não podia levar a mal que a juventude tivesse a sua vez. “As mulheres são assim”, disse filosoficamente [olvidando que também assim são os homens]: “Desalojei Richelieu, e Saint-Lambert faz-me saltar fora! É a ordem das coisas; uma unha empurra outra e – assim gira o mundo”. [*Em sainte-Beuve, I, 211]. A terceira unha dedicou ele uma bela estância:

*È pra ti, Saint-Lambert,
Que desabrocha a flor.
Para mim, os espinhos;
Para ti, a rosa.

Depois, em 1749, sobreveio a morte de Mme., du Chatelet – de parto. Nota bem característica desse tempo é a circunstancia de se encontrarem o marido, Voltaire e Saint-Lambert junto a seu leito de morte, sem uma palavra de recriminação, tornados amigos por aquela perda comum.

Voltaire procurou esquecê-la no trabalho; durante algum tempo ocupou-se a escrever O Século de Luiz XIV; mas o que o reanimou foi o oportuno e renovado convite de Frederico para ir à sua corte em Potsdam. Um irresistível convite acompanhado de 3.000 francos para as despesas de viagem. Voltaire partiu para Berlim em 1750.

Lisonjeou-se muito o que lhe haverem destinado esplendidos aposentos no palácio de Frederico e ser tratado como igual pelo mais poderoso monarca do tempo. A principio suas cartas eram cheias de satisfação. Escreveu em 24 de julho a d’Argental, descreveu Potsdam: “150.000 soldados...ópera, comedia, filosofia, poesia, grandiosidade e encantos, granadeiros e musas, cornetas e violinos, as ceias de Platão, vida social e liberdade, quem acreditaria em tal? No entanto, é a verdade pura”.Alguns anos antes escrevera: “Mon Dieu!...que delicioso seria viver-se em companhia de três ou quatro homens de letras, de talento e sem rivalidades” [que imaginação], “querermo-nos uns aos outros, vivermos serenamente cultivando a arte, trocando idéias sobre as mesmas, ilustrando-nos mutuamente! – comigo imagino que hei de algum dia viver nesse pequeno Paraíso” [*Em Sainte-Beuve, I, 193]. E lá se achava ele!

Voltaire fugia dos jantares oficiais; não tolerava ver-se rodeado de generais superciliosos; reservava-se para as ceias intimas, muito tarde, para as quais Frederico convidava pequeno numero de amigos mais chegados, cultores das letras – pois o maior soberano de seu tempo aspirava com veemência a ser poeta e filosofo. Nessas ceias, a conversação era sempre em francês; Voltaire tentou aprender o alemão, mas renunciou, depois de quase sufocar-se com a pronuncia; seu desejo era que os alemães tivessem mais espírito e menos consoantes [*Brandes, Correntes Principais, I,3]. Alguém que ouviu essas conversações afirmou serem melhores e mais interessantes que o livro mais bem escrito do mundo. Discorriam sobre tudo e diziam o que pensavam. O espírito de Frederico era quase tão acerado como o de Voltaire; e só Voltaire se atrevia a responder-lhe com a finura capaz de matar sem ofender. Frederico “arranha com uma das mãos, mas acaricia com a outra...Nada me aborrece... Encontrei um porto após cinqüenta anos de tormentas. Encontrei a proteção de um rei, a conversação de um filosofo e os encantos de um homem atraente reunidos em uma pessoa que por espaço de dezesseis anos me consolou no infortúnio e me escudou contra os inimigos. Se alguém pode confiar em alguma coisa, é no caráter do rei da Prússia” [*Tallentyre, 226, 230]. Todavia...

Em novembro do mesmo ano Voltaire achou que poderia melhorar suas finanças empregando dinheiro em títulos da Saxônia, a despeito de Frederico proibir tais transações. As apólices subiram e Voltaire teve lucro; mas Hirsch, seu agente, tentou uma chantagem, ameaçando divulgar a especulação. Voltaire “filou-o pela garganta e estatelou no chão”. Sabedor de tudo, Frederico entrou-se de cólera. “Precisarei dele no Maximo um ano mais”, disse a La Mettrie: “espreme-se a laranja e joga-se fora o bagaço”. La Mettrie, ansioso talvez de dispersas seus rivais, teve o cuidado de transmitir aquelas palavras a Voltaire. Recomeçaram as ceias, “mas”, escreveu Voltaire, “o bagaço da laranja é o meu pesadelo...O homem caiu do alto de uma torre e que, enquanto caía, achou o ar macio e disse “Se isto durar está muito bom” -  nem de longe se via em estado igual ao meu”.

Quase desejou uma ruptura, pois acometerá-o a nostalgia que só um francês pode sentir. O rompimento sobreveio em 1752. Maupertuis, o grande matemático que Frederico importara da França juntamente com tantos outros, numa tentativa de elevar o espírito germânico pondo-o em contato direto com a França racionalista, discutiu com Koening, um matemático inferior, certa interpretação de Newton. Frederico tomou o partido de Maupertuis; e Voltaire mais afoito que precavido, o de Koening. A Mme. Deni escreveu: “Infelizmente, sou também um escritor e estou no campo contrário ao do rei. Não tenho cetro, mas tenho a pena”. Quase ao mesmo tempo Frederico escrevia a sua irmã: “Meus homens de letra estão com o diabo no corpo; nada se pode fazer com eles. Só tem inteligência para o trato social...Para os animais deve ser um consolo ver que muitas pessoas dotadas de espírito não são melhores que eles” [*Em Sainte-Beuve, I, 218]. 

Foi então que Voltaire escreveu contra Maupertuis sua celebre “Diatribe do dr. Akakia”. E leu-a para Fredeciroc, o qual riu a noite toda, embora pedindo a Voltaire que não a publicasse. Voltaire fez que anuía; mas o trabalha já estava no prelo e o autor não podia resolver-se a matar o filho de sua própria pena. Quando a publicação apareceu, Frederico ficou flamante de cólera e Voltaire fugiu da deflagração.

Em Frankfurt, apesar de estar fora do território sujeito a jurisdição de Frederico, foi alcançado e preso pelos agentes do rei, que lhe disseram não poder prosseguir na viagem enquanto não restituísse o Palladio, poema de Frederico, impróprio para ser lido na sociedade polida, chegando a ponto de ultrapassar, no gênero a própria Puccelle de Voltaire. Mas o calamitoso manuscrito achava-se em mala que se extraviara; e durante semanas, até ela aparecer, Voltaire foi conservado quase preso. Um livreiro a quem ele devia alguma coisa, achou propicio o momento para exigir a liquidação de sua conta; furioso, Voltaire deu-lhe um murro no ouvido; Collini, o secretario de Voltaire, procurou consolar o homem, salientando: “Senhor, quem vos deu o murro no ouvido é um dos maiores homens do mundo!” [*Morley, 146].

Solto, afinal, já ia atravessar a fronteira quando lhe comunicaram que fora exilado da França. Nessa difícil conjuntura mal soube sua velha alma atribulada que rumo tomar. Por espaço de algum tempo pensou em ir para a Pennsylvania – imagine-se com isto seu desespero! Passou o mês de março de 1754 procurando “um tumulo aprazível” nas cercanias de Genebra, a salvo dos autocratas de Paris e de Berlim; comprou uma velha propriedade denominada Lês Délices; pôs-se a cultivar seu jardim e recobrar a saúde; e quando já parecia descambar para a senilidade, entrou em período de suas mais nobres criações.