23 de abr. de 2011

Kant_Sobre a Religião e a Razão

Tudo isto não parece comum, tímido e conservador? Mas não era assim; ao contrário, esta arrojada negação da teologia “racional”, esta franca redução da religião a fé e esperança morais, provocou protestos de todos os alemães ortodoxos. Enfrentar este “forty-parson-power” [como lhe chamaria Byron] requeria mais coragem que a habitualmente associada ao nome de Kant.

Que era suficientemente intrépido, foi o que se provou cristalinamente quando deu a publico, aos sessenta e seis anos, sua Critica da Faculdade de Julgar e, aos sessenta e nove, A Religião dentro dos Limites da Razão Pura. No primeiro destes livros Kant volve a discutir o argumento da finalidade que, em sua primeira Critica, rejeitara por ser prova insuficiente da existência de Deus. Começa correlacionando a finalidade e a beleza; a beleza a seu ver é algo que revela proporção e unidade de estrutura, como pré-traçadas por uma inteligência. Observa de passagem [e Schopenhauer aqui bebeu bastante para a sua teoria da arte] que a contemplação de um fim harmônico dá sempre prazer desinteressado – e que “o interesse pela beleza da natureza por si mesma é sempre manifestação do bem” [* Critica da Faculdade de Julgar, num.29].

Muitos objetos naturais patenteiam tal beleza, harmonia e unidade, quase nos elevando a noção de um desígnio sobrenatural. Mas, por outro lado, diz Kant, existem na natureza muitos exemplos de desperdício e confusão, e inúteis repetições e multiplicações; a natureza conserva a vida, mas a custa de quanto sofrimento e quantas mortes! A aparência de uma finalidade exterior não é, por isso, prova concludente da Providencia. Os teólogos que tanto se utilizam desta idéia deveriam abandoná-la, e os cientistas que a abandonaram, deveriam retomá-la; é magnífico ponto de partida e conduz a centenas de revelações. Pois a finalidade existe, indubitavelmente, mas uma finalidade interna, de harmonia das partes em relação ao todo; e se a ciência interpretar as partes de um organismo em termos de sua significação em relação ao todo, verá nisto um admirável complemento para aquele outro principio heurístico – a concepção mecânica da vida -  que também é frutífero para descobertas, mas que, isolado, jamais poderá explicar nem mesmo o desenvolvimento de uma folha de relva. 

O ensaio sobre a religião é trabalho notável para um homem de sessenta e nove anos; é porventura a mais audaz de todas as obras de Kant. Da circunstancia de não se dever basear a religião na lógica da razão abstrata e sim na razão pratica do senso moral, conclui-se que quaisquer Bíblias ou revelações devem ser julgadas pelo seu valor moral, não podendo por si mesmas ser juizes de um código moral. As igrejas e os dogmas só tem valor enquanto auxiliam o aperfeiçoamento moral da humanidade. Quando credos ou cerimônias religiosas passam a valer mais do que a excelência moral como prova de religiosidade, é que a religião desapareceu.

A igreja é uma comunidade de pessoas [por mais espalhadas e divididas que sejam] unidas pelo culto a uma lei moral comum. Foi para estabelecer tal comunidade que Cristo viveu e morreu; foi esta a verdadeira igreja que ele edificou, igreja contrastante com o eclesiastismo dos fariseus. Mas outro eclesiastismo quase sossobrou esta nobre concepção. “Cristo aproximou da terra o reino de Deus, mas não foi compreendido e, em lugar do reino de Deus, foi o dos clérigos que se estabeleceu entre nós” [*Cristo em Emanuel Kant, de Chamberlain, vol.I, pág.510]. Os pontos de fé e os rituais substituíram novamente o viver virtuoso, e em vez de se ligarem pela religião os homens dividiram-se em mil seitas; e todas as modalidades de “extravagâncias pias” foram inculcadas como “uma espécie de cortesiana celeste: todos podem obter, por meio de lisonjas, as mercês do regedor do Céu” [*Em Paulsen, pág. 366].

Ainda mais: os milagres não servem de prova a uma religião, pois não podemos confiar nos testemunhos que os atestam; e a prece é inútil, se seu intuito for a alteração das leis naturais que governam todas as coisas. Finalmente, atinge-se o auge da perversão, quando a igreja se torna instrumento nas mãos de um governo reacionário; quando o clero, cuja função é consolar e guiar a humanidade sofredora com a fé, a esperança e a caridade religiosas, se torna o fator do obscurantismo teológico e da opressão política.

A audácia destas conclusões residia no fato de que fora justamente isto o que acontecera na Prússia. Frederico o Grande morrera em 1786 e a ele sucedera Frederico Guilherme II, a quem a política liberal de seu antecessor pareceu rescender impatrioticamente ao Racionalismo francês. Foi demitido Zedlitz, ministro da educação de Frederico, e nomeado Wöllner. Wöllner fora definido por Frederico como “um sacerdote pérfido e intrigante”, que repartia o tempo entre a alquimia e os mistérios rosacrucianos; e ascendeu ao poder por haver-se oferecido como “indigno instrumento” a nova política do monarca, de restaurar compulsoriamente a fé ortodoxa [*Enciclopédia Britânica, palavra “Frederico Guilherme II”].

Em 1788 Wöllner expediu um decreto proibindo ensinar-se nas escolas, ou nas universidades, idéias religiosas que se afastassem da forma ortodoxa do protestantismo luterano; criou rigorosa censura a toda espécie de publicações e determinou fosse demitido todo professor acusado de ensinar qualquer heresia. A principio não molestaram Kant, por ser velho e – como disse um conselheiro real – porque poucas pessoas o liam  e essas mesmas não o compreendiam. Mas o ensaio sobre a religião era compreensível; e, apesar de repassado de fervor religioso, trazia forte saibo à Voltaire; impossível escapar a nova censura. O Berliner Monatschift, que tencionava publicá-lo, recebeu ordem de não o fazer.

Kant procedeu então com energia e coragem dificilmente criveis em um homem já de setenta anos. Enviou o ensaio a alguns amigos de Iena para que o publicassem pela imprensa da universidade. Iena ficava fora da Prússia, e era governada por aquele mesmo Duque de Weimar que se mostrava tão dedicado a Goethe. O resultado foi Kant receber em 1794 uma eloqüente ordem oficial do rei da Prússia, formulada nestes termos: “A nossa mui alta pessoa desagradou grandemente observar que dais mau emprego a filosofia, fazendo-a solapar e destruir muitas das doutrinas fundamentais das Santas Escrituras e da cristandade. Exigimos, pois, imediatamente, claras explicações e esperamos que de futuro não mais daríeis causa a tal desagrado; e sim que cumprindo vosso dever, usareis de tal arte que nossos paternais desígnios sejam cada vez mais realizados. Se continuardes a resistir a esta ordem, podereis contar com desagradáveis conseqüências” [*Em Paulsen, pág.49].

Kant respondeu que todos os letrados tem o direito de formar seus juízos pessoais sobre matéria religiosa e de tornar conhecidas suas opiniões; não obstante isso, durante aquele reinado conservar-se-ia em silêncio. Alguns biógrafos, que podem ser, de longe, muito valentes, malsinaram-lhe esta concessão; mas devemos lembrar-nos de que Kant era septuagenário, de saúde melindrosa e não apto para a luta; além do que, já havia lançado ao mundo a sua mensagem.     

Kant_A Critica da Razão Pratica

Se a religião não pode basear-se na ciência e na teologia, em que se baseará então? Na moral. A base da teologia é muito insegura; melhor desistir dela, ou mesmo destruí-la. Devemos colocar a fé para além do alcance ou dos domínios da razão. Mas para isso a base moral da religião deve ser absoluta e não derivada da discutível experiência sensorial ou de precária dedução -  e não poluída pela associação com a razão falível; deve provir do seu interno pela percepção e intuição diretas. Precisamos encontrar uma ética universal e necessária; os princípios a priori da moral são absolutos e certos como os de matemática. Devemos mostrar que “a razão pura pode ser pratica, isto é, pode por si mesma determinar a vontade, independentemente de qualquer coisa empírica” [*Critica da Razão Prática, pág.31] e que o senso moral é inato e não derivado da experiência. O imperativo moral requerida para base da religião deve ser um imperativo absoluto e categórico.

Ora, a mais surpreendente realidade de toda a nossa experiência é precisamente nosso senso moral, nosso sentimento iniludível, em face da tentação, de que isto ou aquilo é um  mal. Podemos ceder a tentação: entretanto, aquele sentimento persiste. Lê matin je fais des projets et lê soir je fais des sottises [*”pela manhã tomo boas resoluções e a noite cometo loucuras”]; mas sabemos o que são sottises e renovamos depois os projetos. Que coisa é que nos traz o pungir do remorso e a nova resolução? O imperativo categórico existente em nós, a ordem incondicional de nossa consciência, para procedermos como se o máximo da ação nossa fosse tornar-se, por nossa vontade, uma lei universal da natureza [*Razão Prática, pág. 139].

Sabemos, não pelo raciocínio, mas por um sentimento vivo e imediato, que devemos evitar um procedimento que, adotado por todos os homens, tornaria impossível a vida em sociedade. Quero sair-me de apuros dizendo uma mentira? Mas “embora podendo querer a mentira, não posso de modo algum pretender que mentir seja uma lei universal. Pois com semelhante lei não poderia haver compromisso” [*Razão Prática, pág.19]. Daqui a ter eu a impressão de que não devo mentir, mesmo que mentir me seja vantajoso. A Prudência é condicional; seu lema é: Proceder honestamente, quando for a melhor tática; mas a lei moral é em nossos corações incondicional e absoluta.

E uma ação é boa não pelo resultado ou por sua sensatez e sim por ser feita em obediência a este intimo sentimento do dever, a esta lei moral que não procede de nossa experiência pessoal, mas legisla imperiosamente e a priori sobre o nosso procedimento passado, presente e futuro. A única coisa incondicionalmente boa deste mundo é a boa vontade – a vontade de obedecer a lei moral, independentemente do seu proveito ou desvantagens para nós. Nunca nos preocupemos com a felicidade; cumpramos o nosso dever. “A moral não é propriamente a doutrina do modo de sermos felizes, e sim do modo como podemos tornarmos dignos da felicidade” [*Id., 27]. Procuremos a felicidade para os outros; mas, quanto a nós mesmos, demandemos a perfeição -  quer nos traga felicidade, quer nos traga sofrimento. [*Prefacio de Os Elementos Metafísicos da Ética].

Realizar a perfeição em nós e a felicidade nos outros é a regra humana de proceder para consigo e para com os outros, mas sempre como um fim, e nunca como um simples meio. [*Metafísica da Moral, Londres, pág. 47]; também isto, como diretamente sentimos, faz parte do imperativo categórico. Vivendo de acordo com tais princípios criaremos em breve uma comunidade ideal de seres racionais; para criá-la, basta procedermos como se já pertencêssemos a ela; devemos aplicar a lei perfeita no estado imperfeito. Direi ser uma ética difícil de seguir, essa que coloca o dever acima da beleza e a moral acima da felicidade – mas só assim poderemos deixar de ser animais e começar a ser deuses.

Observe-se, enquanto isso, que esta ordem absoluta para o cumprimento do dever prova, afinal, nosso livre arbítrio; como poderíamos conceber uma noção como o dever, se não nos sentíssemos livres? Não podemos provar esta liberdade com a razão abstrata; provamo-la sentindo-a diretamente na crise da escolha moral. Sentimos ser essa liberdade como a própria essência de nosso ser intimo, do “puro Ego”; sentimos dentro de nós a atividade espontânea de um espírito a modelar a experiência e a escolher seus fins. Iniciadas as nossas ações, elas parecem seguir leis fixas e invariáveis; dá-se isto, porém, somente porque percebemos seus resultados por meio dos sentidos, que revestem a tudo o que transmitem com a vestidura daquela lei da causalidade, criada pelo nosso próprio espírito. Achamo-nos, no entanto, além e acima das leis que criamos tendo em mira compreender o mundo sensível; cada um de nós é um centro inicial da força e do poder criador. Sentimos, de certo modo, mas não podemos provar, que somos todos livres.

Também, mau grado não possamos provar, sentimos que somos imortais. Compreendermos que a vida não semelha aqueles dramas tão apreciados pelo povo, em cujo desfecho os maus são castigados e os atos de virtude premiados; compreendemos cada vez mais que a sabedoria da serpente é, aqui no mundo, melhor do que a mansidão da pomba e que os ladrões podem triunfar se roubarem em alta escala. Se a justificação da virtude fosse meramente a utilidade e conveniência terrenas, mal avisados andaríamos sendo bons. Conhecendo, todavia, tudo isto, sofrendo com freqüência o choque brutal dessa verdade, sentimos ainda a ordem mental de procedermos bem, sabemos que devemos fazer o  bem desinteressadamente. Como poderia persistir este senso da retidão se não sentíssemos, em nossos corações, que esta vida é apenas uma parte da vida; que este sonho terrestre é unicamente um embrionico primórdio a que se sucede um novo despertar -  se não soubéssemos vagamente que nesta vida ulterior e mais longa se erguerá a concha da balança em que nem um copo d’água dado de coração deixará de obter restituição centupla?   

Finalmente, e pelo mesmo fundamento, existe um Deus. Se o senso do dever subentende e justifica a crença em recompensas futuras, “o postulado da imortalidade...deverá levar-nos a suposição da existência de uma causa adequada a este efeito; por outras palavras – deve ser um postulado a existência de Deus” [*Razão Prática, pág 220]. Ainda aqui a prova não é feita pela “razão”; o senso moral, que se relaciona com o mundo das ações, deve ter prioridade sobre a lógica abstrata que se desenvolveu unicamente para aplicar-se aos fenômenos sensíveis. Nossa razão dá-nos liberdade de crer que, atrás da coisa em si, há um Deus justo; nosso senso moral nos ordena que creiamos nisto. Tinha razão Rousseau: acima da lógica da cabeça está o sentir do coração. Pascal havia acertado: o coração tem suas razões que a cabeça jamais compreenderá.  

Kant_A Critica da Razão Pura

Que significa este titulo? Critica não quer dizer aqui precisamente um ataque e, sim, uma analise critica; Kant não se põe a atacar a “razão pura”, a não ser no fim, para mostrar-lhe as limitações; deseja, de preferência, mostrar suas possibilidades e elevá-la acima do impuro conhecimento que nos vem pelo canais deformadores dos sentidos. Razão “pura” significa – a que não nos vem por intermédio dos sentidos, independe de toda a experiência sensorial; é o conhecimento que temos em virtude da natureza e estrutura inerentes ao espírito.

Logo de começo Kant manda um desafio a Locke e a escola inglesa; - o conhecimento não procede todo ele dos sentidos. Hume pensava ter demonstrado não existir alma nem ciência, sendo nosso espírito exclusivamente nossas idéias em séries e associações; e, nossas certezas, apenas probabilidades em perpetuo perigo de destruição. Estas falsas conclusões, diz Kant, são a conseqüência de premissas falsas: quem as tira presume que todo o conhecimento deriva de sensações “isoladas e distintas”; naturalmente que estas sensações não podem proporcionar a necessidade ou a invariável seqüência que redundam em certeza; e não devemos, também naturalmente, esperar “ver” a alma, nem mesmo com os olhos do senso intimo. Podemos considerar coisa assente ser impossível a certeza absoluta do conhecimento, se todo o conhecimento provier da sensação de um fundo externo. Mas que sucederá se tivermos conhecimento independente da experiência dos sentidos, conhecimento cuja verdade para nós seja certa, mesmo antes da experiência -  isto é, a priori? A verdade absoluta, então, e a ciência absoluta não se tornariam possíveis? Existe tal conhecimento absoluto? Este é o problema da primeira Critica. “O meu caso é saber que podemos fazer com a razão se suprimirmos todo o material e auxilio da experiência”. [*Critica da Razão Pura, prefacio, pág XXIV].

A Critica torna-se uma pormenorizada biologia do pensamento, um exame da origem e da evolução dos conceitos, uma analise da estrutura hereditária do espírito. Isto, acredita-o Kant, é todo o problema da metafísica. “Aspirei principalmente a que este livro fosse completo; e atrevo-me a sustentar que não deve existir um só problema metafísico que aqui não haja sido solvido, ou para cuja solução não se haja ao menos dado a chave”. Exegi monumentum aere perennius! É com tal egoísmo que a natureza nos incita a criar. 

A Critica imediatamente fere o ponto necessário. “A experiência não é de modo algum o único campo a que nosso entendimento deva confinar-se. Diz-nos a experiência aquilo que é, mas não que deva necessariamente ser assim e não de outro modo. Por isso nunca nos proporciona verdades realmente gerais; e nossa razão, que se sente principalmente ansiosa por esta espécie de conhecimento, torna-se, por ela, mais estimulada para saber, do que satisfeita. As verdades gerais, que tragam ao mesmo tempo o característico de uma necessidade interior, devem independer da experiência, ser claras e certas por si mesmas”. Quer dizer que devem ser verdadeiras, seja qual for nossa posterior experiência; verdadeiras mesmo antes da experiência; verdadeiras a priori.

Quanto podemos adiantar-nos, independentemente de toda a experiência, em conhecimentos a priori, mostra-no-lo o brilhante exemplo da matemática”. O conhecimento matemático é verdadeiro e certo; não podemos conceber que alguma futura experiência o contradiga. Podemos acreditar que o sol “nascerá” amanhã no poente ou que algum dia, em algum imaginável mundo de amianto, o fogo não queimará a madeira – mas em hipótese alguma podemos crer que duas vezes dois sejam outra coisa que não quatro. Tais verdades são verdadeiras antes da experiência; não dependem da experiência passada, presente ou futura. Por isso, são verdades absolutas e necessárias; é inconcebível que algum dia se possam tornar não verdadeiras. Mas donde tiramos este característico do absoluto e da necessidade? Não da experiência, pois a experiência não nos fornece outra coisa além de sensações e fatos isolados, cuja seqüência pode modificar-se no futuro. [*O Empirismo Racional [James Dewey] inicia a controvérsia neste ponto e afirma, contra Hume e Kant, que a experiência tanto nos proporciona relações e seqüências como sensações e fatos].

O caráter necessário destas verdades advêm da estrutura do nosso espírito, do modo natural e inevitável com que nosso espírito humano [eis aqui, finalmente, a grande tese de Kant] não é uma cera passiva onde a experiência e as sensações gravam sua vontade absoluta e, além disso, caprichosa; nem é o nome abstrato das séries ou agrupamentos de estados mentais; é um órgão ativo que modela e coordena as sensações em idéias; órgão que transmuta a caótica multiplicidade dos fatos da experiência em ordenada unidade do pensamento.

Mas como?

1_Estética Transcendental
O esforço para responder a esta pergunta, para examinar a estrutura inerente ao espírito ou as leis inatas do pensamento é o que Kant denomina “filosofia transcendental”, por ser problema que transcende a experiência dos sentidos. “Chamo conhecimento transcendental o que se ocupa menos com objetos, do que com os nossos conceitos a priori dos objetos” [*Critica da Razão Pura, pág.10] – com os nossos modos de correlacionar a experiência em conhecimento. Existem dois graus ou estágios neste processo de elaborar a matéria prima da sensação, convertendo-a no produto do conhecimento. O primeiro é a coordenação das sensações aplicando-lhes as formas de percepção – espaço e tempo; o segundo é a coordenação das percepções assim desenvolvidas, aplicando-lhes as formas de concepção – as “categorias” do pensamento.

Empregando o termo estética em seu sentido original e etimológico, como significando sensação ou sentimento, Kant chama o estudo do primeiro desses estágios “Estética Transcendental”; e utilizando a palavra lógica com a significação de ciência das formas do pensamento, denomina o estudo daquele segundo estagio “Lógica Transcendental”. São palavras terríveis, que vão assumindo sentido mais claro a medida que prossegue a exposição; uma vez no alto desta montanha, o caminho até Kant estará relativamente desbravado.

Mas o que se designa precisamente por sensações e percepções? – e como pode o espírito transformar as primeiras nas ultimas? Em si mesma, a sensação é apenas a consciência de um estimulo; sentimos um sabor na língua, um cheiro nas narinas, um som nos ouvidos, um raio de luz na retina e uma pressão nos dedos; é isto a matéria prima a principiar nossa experiência; é isto o que sente a criança nos primeiros dias de sua indecisa vida mental; ainda não é o conhecimento. Que estas sensações, entretanto, se reúnam em torno de um objeto no espaço e no tempo – digamos, em uma maçã; que este cheiro nas narinas, o sabor na língua, a luz na retina, a pressão reveladora da forma nos dedos e na mão, se reúnam e se agrupem por si mesmos em torno dessa “coisa”; temos agora a impressão não tanto de um estimulo, como de um objeto particular; aqui está uma percepção. A sensação transformou-se em conhecimento.

Mas perguntemos de novo: esta mudança, este agrupamento, é automático? As sensações por si mesmas se juntam e ordenam espontaneamente e naturalmente, tornando em percepção? Sim, dizem Locke e Hume; absolutamente não, diz Kant.

Pois se estas sensações chegam a nós pelos vários canais dos sentidos, por um milheiro de “nervos aferentes” que da pele, dos olhos, dos ouvidos e da língua penetram até o cérebro; que confusão de mensagens não será, ao invadirem os escaninhos do espírito e a reclamarem a atenção! Não admira que Platão falasse na “arraia miúda dos sentidos”. E, deixando-os entregues a si mesmos, permanecerão arraia, uma “multiplicidade” caótica, lastimavelmente impotente, a espera de ser coordenada, para adquirir significação, finalidade e poder. Poderiam, semelhantemente, as mensagens que um general recebe de mil setores da linha de combate ajustar-se sem qualquer auxilio em compreensão e ordens? Não; há um legislador para essa turba, um poder dirigente e coordenador que não se limita unicamente a receber e, sim, toma esses átomos de sensação e os modela em um sentido.

Observe-se, primeiro, que nem todas as mensagens são aceitas. Miríades de forças atuam a cada instante em nosso corpo; uma tempestade de estímulos açoita as terminações nervosas  que amebianamente nos ficam a sondar o mundo exterior; mas nem todos os chamados são escolhidos; só escolhemos as sensações que podem amoldar-se em percepções adequadas a nosso intento atual, ou as que tragam as imperiosas mensagens de perigo, mensagens estas sempre relevantes. O relógio tictaqueia, mas não o ouvimos; mas este mesmo tictaquear, não mais forte que antes, será incontinenti ouvido, se nosso intento for ouvi-lo. A mãe a dormir junto ao berço do filho é surda ao tumultuo da cidade em redor; mas que o pequeno se mova e ei-la a voltar a vigília e a prestar atenção, como o mergulhador que se apressa a subir a superfície do mar. Se nosso intuito for somar, o estimulo “dois e três” traz a resposta “cinco”; se for multiplicar, e se o estimulo for o mesmo, “dois e três” provocam a resposta “seis”.

A associação de sensações ou idéias não se faz meramente pela continuidade  no espaço e no tempo e nem pela similitude ou por serem os fatos mais recentes, freqüentes ou internos; ela é, acima de tudo, determinada pelo fim que o espírito tem em mira. As sensações e os pensamentos são servidores, esperam nosso chamado e não acodem se não precisarmos deles. Existe um agente selecionador que os utiliza e é seu amo. Além das sensações e da idéias há o espírito.

Kant acredita que este agente de seleção e coordenação emprega, antes de tudo, dois métodos simples para a classificação do material que lhe é apresentado: o senso do espaço e o senso do tempo. Assim como o general coordena as  mensagens que lhe são trazidas de acordo com o lugar donde vem e o tempo em que foram escritas, e encontra assim uma ordem e um sistema para todas, também o espírito localiza suas sensações no espaço e no tempo; ele as atribui a este ou aquele objeto, ao tempo atual ou ao passado. O espaço e o tempo não são coisas percebíveis, mas modos de percepção, meios de dar um sentido as sensações; o espaço e o tempo são órgãos de percepção.

Ambos existem a priori, pois toda experiência coordenada os subentende e pressupõe. Sem eles as sensações nunca se converteriam em percepções. Existem a priori, por ser inadmissível que pudéssemos, em tempo algum, ter alguma experiência que não os implicasse. E por existirem a priori, suas leis, que são as leis da matemática, existem a priori, absolutas e necessárias, tão eternas quanto o mundo. Não é simplesmente provável e, sim, certo que jamais encontraremos uma linha reta que não seja o caminho mais curto entre dois pontos. Ao menos a matemática se salvou do dissolvente ceticismo de David Hume.

Poderão salvar-se, igualmente, as demais ciências? Sim, desde que se possa demonstrar que seu principio básico, a lei da causalidade -  de que a dada causa deverá sempre seguir-se dado efeito – assim como o espaço e o tempo, é tão inerente a todos os processos do entendimento, que não se pode conceber nenhum fato futuro que a viole ou lhe fuja. È a causalidade, também a priori requisito e condição indispensável de todo pensamento?    

2_Analítica Transcendental
Deste modo passamos do vasto campo das sensações e percepções ao escuro e exíguo cubículo do pensamento; passamos da “estética transcendental” à “lógica transcendental”. E, primeiro que tudo, passamos a nomear e auxiliar aqueles elementos de nosso pensamento que são menos proporcionados ao espírito pela percepção do que proporcionados a percepção pelo espírito – daquelas alavancas que elevam o conhecimento “perceptivo” dos objetos ao conhecimento “conceptivo” das relações, seqüências e leis – daqueles instrumentos do espírito que refinam a experiência em ciência.

Exatamente como as percepções ordenaram as sensações em torno dos objetos no espaço e no tempo, a concepção também ordena as percepções [objetos a fatos] em torno das idéias de causa, unidade, relações recíprocas, necessidade, contingência, etc.; estas e outras “categorias” são o arcabouço em que recebemos as percepções e por meio do qual elas são classificadas e moldadas em conceitos ordenados de pensamento. Esta é a verdadeira essência e característica do espírito; o espírito é coordenação da experiência.

E observe-se aqui novamente a atividade desse espírito que para Locke e Hume era simples “cera passiva” a sofrer o bombardeio das impressões sensoriais. Considere-se um sistema, como o de Aristóteles, sobre o ato de pensar; pode-se conceber que esta considerável coordenação de dados seja produzida pela espontaneidade automática e anárquica dos próprios dados? Serve de exemplo o portentoso fichário-catálogo das bibliotecas, inteligentemente disposto em séries ordenadas de fichas pela vontade humana. Representemo-nos em seguida todas as fichas despejadas no chão e em confusão tremenda. Podemos conceber que esses papeis dispersos saiam por si mesmos da desordem, como nas historias de Münchhausen, volvendo claramente a seus lugares alfabéticos nas caixas próprias, e que cada caixa volte para o devido lugar nas prateleiras, de modo a em tudo restabelecer-se a ordem, a significação e a finalidade primitivas? Que conto de fada não impingiram, afinal, tais céticos!  

A sensação é o estimulo não organizado; a percepção são as sensações organizadas; o conceito são as percepções organizadas; a ciência é o conhecimento organizado; a sabedoria é a vida organizada; cada qual é um grau superior de ordem, seqüência e unidade? Não das próprias coisas, pois estas se nos tornam conhecidas unicamente pelas sensações que por mil condutos nos chegam, ao mesmo tempo, em desordenada multidão; é a nossa intenção que dá ordem, seqüência e unidade a esta perturbadora anarquia; somos nós mesmos, nossas personalidades, nossos espíritos, que projetamos luz nesses mares.

Locke não teve razão quando disse: “Nada existe na inteligência que não tenha existido primeiro nos sentidos”;  Leibnitz acertara ao acrescentar; “Nada, exceto a própria inteligência”.  “Sem as concepções as percepções são cegas”, diz Kant. Se as percepções se entrelaçam automaticamente em pensamento coordenado, se o espírito não fosse um esforço ativo a ordenar continuamente o caos, como poderia a mesma experiência dos sentidos deixar um homem ser medíocre, e, em outra alma de mais atividade e mais incansável, alçar-se até a luz da sabedoria e a beleza lógica da verdade?

O mundo, por conseguinte, apresenta ordem, não por si mesmo, mas devido ao pensamento que reconhece ser ele uma ordem, o primeiro estagio de classificação dos dados da experiência, que, por fim se convertem em ciência e filosofia. As leis do pensamento são também as leis das coisas, pois apenas conhecemos as coisas por meio desse pensamento que deve obedecer as referidas leis, desde que ele e elas são a mesma coisa; com efeito, como iria dizer Hegel, as leis da lógica e as da natureza são a mesma coisa, e em si compreendem a lógica e a metafísica. Os princípios generalizados das ciências são necessários por serem as leis ultimas do pensamento, encerradas e pressupostas em toda a experiência passada, presente e futura. A ciência é absoluta e a verdade é eterna.

3_Dialética Transcendental
Não obstante, esta certeza, este absoluto das mais altas generalizações da lógica e da ciência é paradoxalmente limitado e relativo; estritamente limitado ao campo da experiência presente, e estritamente relativo a modalidade de nossa experiência humana. Por isso, se nossa analise foi certa o mundo como o conhecemos é uma construção, uma obra acabada, quase – poder-se-ia dizer – um produto manufaturado, para o qual o espírito contribui tanto com suas formas modeladoras, como as coisas contribuem com seus estímulos. [Assim é que sabemos semicircular a cabeceira da mesa, embora nossa sensação seja de uma elipse]. Um objeto, tal qual nos aparece, é um fenômeno, uma aparência, talvez muito diferente do objeto exterior que era antes de ficar ao alcance de nossos sentidos; jamais poderemos saber o que é originalmente esse objeto; a “coisa em si” pode ser objeto do pensamento ou da inferência [um noumenon], mas, não ser conhecida em sua realidade – pois esta realidade se mudaria na sua passagem pelos sentidos e pelo pensamento. “Desconhecemos completamente o que podem ser os objetos em si mesmos e fora da receptividade dos sentidos. Nada sabemos, a não ser nosso modo de percebê-los; esse modo nos é peculiar, e dele não participam necessariamente todos os outros seres, exceto, sem duvida, os seres humanos” [*Critica, pág. 37. Se Kant não acrescentasse a ultima clausula, cairia seu argumento sobre a necessidade do conhecimento]. A lua, conforme a conhecemos, é simplesmente um conjunto de sensações [como Hume o notou] unificadas [como Hume não o notou] por nossa congênita estrutura mental, mediante a elaboração das sensações em percepções, e destas em conceitos ou idéias; em suma, somente nossas idéias é que são a lua para nós. [*Deste modo John Stuart Mill, com toda a sua tendência inglesa para o realismo, foi levado afinal a definir a matéria meramente como “uma possibilidade permanente de causar sensações”].   

Não se infira que Kant ponha duvida a existência da “matéria” e do mundo exterior; apenas diz que a seu respeito nada de certo conhecemos, a não ser que existem. Nosso conhecimento particularizado é de sua aparência, de seus fenômenos, das sensações que nos causam. Idealismo não quer dizer, como o vulgo entende, que nada exista externamente ao sujeito que tem percepções, sim, que grande parte de cada objeto é criada pelas formas de percepção e compreensão: conhecemos os objetos quando transformados em idéias; o que os objetos sejam, antes de assim se transformarem, não o podemos saber. A ciência, afinal de contas, é ingênua; supõe lidar com as coisas em si mesmas, em sua perfeita, verdadeira e indeformada realidade; a filosofia ilude-se um pouco mais, entendendo que todo o material da ciência consiste mais em sensações, percepções e conceitos do que em coisas. “O maior mérito de Kant”, diz Schopenhauer, “é distinguir o fenômeno da coisa em si” [*O Mundo como Vontade e como Idéia, vol II, pág.7].

Disso se conclui que qualquer tentativa por parte da ciência ou da religião para saber exatamente o que é, em ultima analise, a realidade, redunda em simples hipóteses: “O conhecimento não pode ultrapassar os limites da sensibilidade” [*Critica, pág.215]. Tal ciência transcendental se perde em “antinomias” e tal teologia transcendental se perde em “paralogismos”. A cruel função da “dialética transcendental” é examinar o valor destas tentativas da razão para fugir ao circulo constritor das sensações e aparências, projetando-se no mundo incognoscível das coisas “em si mesmas”.

As antinomias são os dilemas insolúveis originados de uma ciência que busca transcender a experiência. Assim, por exemplo, quando o conhecimento procura saber se, no espaço, o mundo é finito ou infinito, o pensamento repele qualquer dessas suposições: para além de qualquer limite somos levados a conceber algo mais remoto e assim indefinidamente; e todavia o infinito é em si inconcebível. Ou então: o mundo teve um começo no tempo?  Não podemos conceber a idéia da eternidade; mas não podemos, igualmente, conceber algum ponto de partida no passado, sem compreender, incontinenti, que antes desse ponto já existia alguma coisa. Teve o encadeamento de causas, que a ciência estuda, um começo, uma Primeira Causa? Sim, pois não se pode conceber uma cadeia infinita; e também não – porque uma primeira causa não causada é igualmente inconcebível. Existe alguma saída para estes becos sem saída do pensamento? Sim, diz Kant, se nos lembrarmos de que o  espaço, o tempo e a causa são modos de percepção e concepção que devem entrar em toda a nossa experiência, uma vez que constituem o tecido e o arcabouço da experiência; surgem esses dilemas quando supomos que o espaço, o tempo e causa são coisas exteriores independentes da percepção. Jamais teremos qualquer experiência que não seja interpretada em termos de espaço, tempo e causa; mas impossível qualquer filosofia se nos esquecermos de que espaço, tempo e causa não são coisas e, sim, modos de interpretar e compreender.

O mesmo se dá com os “paralogismos” da teologia “racional”, que tenta provar pela razão pura que a alma é uma substancia incorruptível, que a vontade é livre e superior a lei de causa e efeito, e que existe um “ser necessário”, Deus, como pressuposto de toda a realidade. A dialética transcendental deve lembrar a teologia que substancia, causa e necessidade são categorias finitas, modos de arranjo e classificação aplicados pelo espírito a experiência sensorial e somente valiosos e fidedignos em relação aos fenômenos que se mostram a referida experiência; não podemos aplicar estes conceitos ao mundo nominal [ou meramente inferido e conjetural]. A religião não pode ser provada pela razão pura.

Assim termina a primeira Critica. Pode-se fazer idéia do sorrir sardônico de David Hume, escocês mais terrível que o próprio Kant, ao balancear esse resultado. O livro era tremendo, com suas oitocentos paginas; de peso maior do que o suportável e com respeitável terminologia; propunha-se resolver todas as questões metafísicas e incidentemente salvar o absoluto da ciência e a verdade essencial da religião. No entanto, que fizera na realidade? Destruíra o mundo ingênuo da ciência e limitara-o, se não em grau, certamente em objetivo, a um mundo confessadamente de meras superficialidades e aparências, além das quais só pode haver disparatas antinomias; e assim “salvara” a ciência! Os mais eloqüentes e incisivos tópicos do livro apregoam que os objetos da fé – uma alma livre e imortal e um bondoso criador – jamais a razão os poderia provar; e deste modo “salvara” a religião! Não admira que os padres da Alemanha protestassem violentamente contra esta salvação e se vingassem dando a seus cães o nome de Emanuel Kant [*Wallace, pág.82].

E não é também de admirar que Hume comparasse o modesto professor de Koeningsberg com o terrível Robespierre; o ultimo matara unicamente um rei e alguns poucos milhares de franceses – o que um alemão poderia perdoar; mas Kant, disse Heine, matou Deus e solapou os mais preciosos argumentos da teologia. “Que vivo contraste, o da vida exterior daquele homem com suas idéias destruidoras e revolucionárias do mundo! Se os cidadãos de Koeningsberg houvessem suspeitado a significação dessas idéias, sentiriam mais respeitoso temor na presença dele do que na de um carrasco, que somente mata seres humanos. Mas o bom povo nada via em Kant a não ser um tímido professor de filosofia; e quando na hora habitual Kant saía de casa, eles amavelmente o saudavam e acertavam os seus relógios” [*Heine, Miscelânea de Prosa, Filadélfia, 1876, pág. 146].